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A má nutrição infantil não tira férias na Espanha

Crianças almoçam no refeitório da escola pública Manuel Altolaguirre, no bairro pobre de La Palma-Pamilla, na cidade de Málaga, sul da Espanha. Foto: Inés Benítez/IPS
Crianças almoçam no refeitório da escola pública Manuel Altolaguirre, no bairro pobre de La Palma-Pamilla, na cidade de Málaga, sul da Espanha. Foto: Inés Benítez/IPS

 

Málaga, Espanha, 14/7/2014 – São duas horas da tarde e María mexe macarrão com molho de tomate em uma grande panela. Há férias escolares na Espanha, mas a cozinha de uma escola pública na cidade de Málaga continua fazendo fumaça para alimentar mais de cem meninos e meninas, cujos pais não têm como alimentar.

“A cozinha está sempre funcionando, no inverno e no verão. Há famílias em situação de extrema necessidade. Para muitas crianças, a da escola é a única refeição quente do dia”, contou à IPS o diretor da escola pública Manuel Altolaguirre, Miguel Ángel Muñoz. A escola fica em La Palma-Palmilla, um dos bairros mais pobres desta cidade da Andaluzia.

Diversos informes revelam a difícil situação econômica que sofrem as famílias com filhos na Espanha e como esta influi na escassa qualidade da alimentação e na má nutrição infantil. São 2,3 milhões de menores, 27,5% do total, os que vivem abaixo da linha de pobreza, afirma um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

O estudo A Infância na Espanha 2014, apresentado no dia 24 de junho, mostra que o número de famílias com crianças nas quais todos os adultos estão sem trabalho aumentou 290% desde 2007, ano anterior ao estouro da crise financeira mundial. Entre esse ano e 2013, passou de 325 mil para 943 mil famílias.

A taxa de desemprego na Espanha, que tem 46,7 milhões de habitantes, é de 25,9% da população economicamente ativa, indica o Instituto Nacional de Estatística. Também há “trabalhadores pobres” com salários precários que não bastam para pagar a hipoteca e as contas de água, luz, gás e alimentação dos filhos.

“Meu pai vende bilhete de loteria e minha mãe está em casa”, contou Rafa à IPS, pouco depois de almoçar macarrão, salada e melancia no refeitório da escola. Tem oito anos e vive com seus irmãos de 12, dez e quatro anos. Ao seu lado, Yerai, de 11, contou que todos os anos come na escola no verão junto com seu irmão Antonio, enquanto seu pai trabalha “carregando malas no aeroporto”. E acrescentou que “a comida está boa”, e que quando crescer quer ser “mecânico de automóvel ou policial”.

Daniel Fernández, da não governamental Animação Malacitana, responsável há 13 anos pelas atividades da escola durante o verão, disse à IPS que “há camadas inteiras da sociedade em situação de emergência” necessitando de ajuda.

Desde 2013, a Junta de Andaluzia, o governo da comunidade mais povoada do país, estende ao período de férias ajudas que proporciona durante o período letivo e subvenciona escolas de verão – como a Manuel Altolaguirre – nas cidades da região. Nestas cidades, as crianças mais vulneráveis recebem sem custo café da manhã, almoço e lanche, ao mesmo tempo em que participam de atividades lúdicas e educativas conduzidas por organizações sociais.

“Meu filho teve que levar meu neto para a escola de verão porque não tem como lhe dar comida”, lamentou à IPS Mercedes Arroyo, de Málaga, com três filhos, de 28, 24 e 18 anos e três netos, dois de sete, e um de dez anos. “E nesta situação estão muitos”, ressaltou seu marido, Enrique Sánchez, na porta da cooperativa social 25 Mulheres de La Palma-Palmilla.

É comum encontrar muitos avós com baixas pensões que mantêm seus filhos e netos que não têm renda. Rosario Ruíz, de 67 anos, recebe por mês 365 euros (US$ 497) por auxilio doença e vive com sua neta de 26 anos, desempregada e mãe solteira de duas crianças, de dois e cinco anos. “Vai contar que preciso de ajuda, vai?”, perguntou esta mulher à IPS após comprar na cooperativa, que vende a preço de custo alimentos de primeira necessidade e produtos de limpeza para famílias pobres.

Cerca de 200 mil crianças da Espanha não têm uma refeição com carne, frango ou peixe a cada dois dias, afirma a ONG Educo em sua página digital. Uma má nutrição na infância pode ter consequências irreversíveis em sua saúde, suas capacidades e seu desenvolvimento, segundo especialistas.

“Os pais necessitam que os refeitórios das escolas estejam abertos também no verão”, destacou Muñoz, recordando a especial vulnerabilidade da população infantil que vai às escolas de La Palma-Palmilla. São, em sua maioria, de famílias de ciganos e imigrantes, muitos romenos, que também durante o período letivo tomam café da manhã, almoçam e recebem um saquinho de merenda dentro de um plano contra a exclusão da Junta socialista de Andaluzia, uma das comunidades mais castigadas pelo desemprego.

Diversas ONGs de Málaga organizam atividades para as crianças desfavorecidas em férias, como a Málaga Acolhe em sua iniciativa Queremos Montar um Circo!, para 120 menores imigrantes, financiada por microdoações, ou a Prodiversa, que atende em julho 23 crianças entre seis e 11 anos em um acampamento subvencionado pela Obra Social da Caixa Pró-Infância que oferece refeição, reforço escolar e psicoterapia.

A Espanha é o segundo país da União Europeia com mais pobreza infantil, só atrás da Romênia, segundo um informe da organização Cáritas Europa sobre o impacto social das medidas de austeridade aplicadas nos países mais afetados pela crise, apresentado no dia 27 de março, em Atenas.

A Cáritas, uma organização assistencial católica, calcula que 29,9% dos espanhóis menores de 18 anos vivem à beira da exclusão social. Essa porcentagem sobe para 33,8% na análise Pobreza Infantil e Exclusão Social na Europa, da ONG Save the Children, publicada no mês passado.

“É a crônica de um empobrecimento anunciado”, disse à IPS o economista Juan Torres López, que acredita que “as políticas de cortes muito duros desmantelaram os serviços sociais e bens coletivos básicos”, convertendo a Espanha no “país com mais desigualdade da Europa”.

Segundo Torres, o governo do direitista Mariano Rajoy adotou medidas de corte “inadequadas, injustas e ineficazes” para enfrentar a crise econômica, em lugar de escolher “alternativas que poderiam dar resultado, como uma reforma fiscal que buscasse a igualdade e o financiamento não submetido ao lucro dos bancos”. A dotação orçamentária destinada à infância entre 2010 e 2013 caiu 14,6%, segundo o Unicef.

Os ajustes para reduzir o gasto público começaram durante a gestão do socialista José Luis Rodríguez Zapatero (2004-2011), mas foi a partir da chegada de Rajoy que foram impostos os maiores cortes nas áreas sociais da democracia espanhola.

Professores e membros de organizações sociais contaram à IPS que há alunos que repetem três vezes seu prato nos refeitórios. Muitos inclusive carecem de água quente para tomar banho no inverno, porque vivem em famílias desestruturadas ou apenas sem condições.

“Menos mal que chega o verão. Já não me importará tomar banho com água fria”, pontuou Fernández, recordando o que lhe disse um menino cuja família não podia pagar um aquecedor de água ou um botijão de gás todos os meses. Envolverde/IPS