Ailton Krenak fala de sua leitura de mundo no contexto das mudanças climáticas

Por Sucena Shkrada Resk, para o 350.

Atualizado em 08/10/2019 às 23:10, por Sucena Shkrada Resk.

Por Sucena Shkrada Resk, para o 350.org –

“As pessoas acham que as mudanças climáticas são um enunciado para o futuro, mas para nós que vivemos dentro da floresta, isso acontece há algum tempo, e dependemos dela para ter remédio, alimento e abrigo”

Ailton Krenak, aos 66 anos, liderança indígena dos Krenak, da região da Bacia do Rio Doce, em Minas Gerais, é o entrevistado especial desta semana, da 350.org Brasil. Com um extenso repertório de mobilização ao longo de sua vida, pela causa indígena e socioambiental, tem uma desenvoltura ímpar para contar histórias, defender causas, com riqueza de contextualização e argumentos, que prende a atenção dos ouvintes por onde passa.

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Um dos episódios marcantes desta trajetória aconteceu quando com seu rosto pintado de jenipapo discursou na Assembleia Constituinte em 1987. Teve uma fala de resistência e foi um dos atores fundamentais para o capítulo indígena na Constituição de 1988 junto com representantes indígenas de outros povos. Neste mesmo ano, foi um dos fundadores da União das Nações Indígenas, e no ano seguinte, participou da Aliança dos Povos das Floresta, que reunia indígenas e seringueiros com a proposta de criação das reservas extrativistas. Incansável, diz até hoje – “É preciso continuar lutando por estes direitos”.

Ailton Krenak, na Casa do Povo, em São Paulo. Foto: Sucena Shkrada Resk/350.org Brasil

Durante sua vida, foram incontáveis episódios e muitos deles estão descritos em seu livro de memórias “A luta pela terra não parou até hoje”, de 2015, com 14 entrevistas que concedeu entre os anos de 1984 e 2013. Neste ano, sua obra mais recente é “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, pela Cia. Das Letras, em que critica a ideia de a humanidade ser vista como separada da natureza.

Ailton Krenak já atuou como produtor gráfico, jornalista, mas é como palestrante e debatedor, que gera, cada vez mais, respeito por onde contribui com seus saberes. Após algumas fases longe de sua aldeia em que teve a oportunidade de “rodar o mundo” levando a sua mensagem, retomou à sua aldeia na região do Rio Doce, tão castigada pelo banho de lama tóxica, em novembro de 2015, quando houve o rompimento da barragem de rejeito da Samarco Mineração, pertencente à Vale e da BHP Billinton, em Bento Rodrigues, Mariana. Os comprometimentos se estenderam até o litoral do Espírito Santo. Ele é um crítico contumaz desse que é considerado o maior dano ambiental no Brasil.

Em entrevista concedida à jornalista Sucena Shkrada Resk, da 350.org Brasil, em São Paulo, Krenak permeia os desafios enfrentados por povos indígenas frente às mudanças climáticas até o que assegura em seus modos de vida, o papel de “defensores climáticos”.

350.org Brasil – Quais os principais desafios com relação às mudanças climáticas que os indígenas enfrentam hoje?

Ailton Krenak – Existe um vídeo – Para onde foram as Andorinhas, com indígenas do Parque Indígena do Xingu, que foi produzido em 2016, pelo Instituto Catitu e pelo Instituto Socioambiental (ISA), já mostrava como a questão das mudanças climáticas estão afetando o cotidiano das aldeias. Neste caso, no Xingu, causou o dano para os pés de bananas e caju, que ficam pretos, antes de madurar e o cacho da banana adoece antes do ponto de ser comido. Muitas outras espécies endêmicas, que só ocorrem naquela região, estão sendo afetadas. De onde os indígenas tiram as matérias para o seu cotidiano, estão ficando sem esses recursos. E um dos anciões fala uma coisa preocupante – ‘Nós sempre vivemos aqui e nunca tivemos de tirar nada fora da floresta. Daqui a pouco, não vamos ter mais o que comer aqui dentro’. Para mim, isso é a coisa mais direta que está afetando as comunidades indígenas. O ciclo da polinização que está mudando. Na minha casa, na minha aldeia, estamos enfrentando um drama tão brutal, pelo fato de o rio Doce ter sido invadido pela lama, que as outras alterações na ecologia, da vegetação, dos animais vêm como espécie de consequência. Estamos sentindo o dano desta mudança no corpo. As pessoas acham que as mudanças climáticas são um enunciado para o futuro, mas para nós que vivemos dentro da floresta, isso acontece há algum tempo, e dependemos dela para ter remédio, alimento e abrigo. As mudanças climáticas estão mudando o ciclo desta oferta da natureza.

350.org Brasil – Quais são as suas expectativas quanto à Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP-25), que vai acontecer em dezembro, no Chile, que é um país sul-americano, continente com forte presença indígena?

Ailton Krenak – Eu acompanhei as conferências do clima até por volta de 2012. Eu entendi que os debates que acontecem neste fórum não têm um contato direto com o cotidiano e com as políticas que os estados nacionais imprimem. Eu deixei de participar destes debates, porque achei que já se exauriram. Eu não acredito que a COP-25 vai conseguir sair deste âmbito de produzir protocolos e documentos que não são respeitados por agências multilaterais e nem pelas corporações. Então, fica o povo produzindo um repertório enorme de alternativas e de questionamentos, que a governança global ignora.

350.org Brasil – E com relação aos protocolos de consulta que vários povos indígenas no Brasil estão produzindo, para que haja também respeito à Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) 169, frente à implementação principalmente de grandes empreendimentos?

Ailton Krenak – Nós mesmos, na TI Krenak, temos um protocolo indígena, como os Yanomami, entre outros povos, como tentativa de barrar a agressão e assédio que têm sido impostos às nossas comunidades, nestes processos, por governos e empresas. Mas acho que tem um limite de efetividade, porque nos tornamos uma humanidade tão ‘gasta’ com a ideia de compromisso, que o único compromisso que as pessoas estão tendo agora é com a própria realização pessoal, de uma sociedade consumista e alienada. O ambientalista e pesquisador uruguaio Eduardo Gudynas, do Centro Latino-Americano de Ecologia Social, diz uma coisa importante: ‘nós produzimos documentos, mas não somos capazes de nos mobilizar e derrubar governos quando eles abusam acintosamente desses protocolos e documentos que produzimos em várias ocasiões, inclusive, de Constituições na América Latina’.

350.org Brasil – Em relação ao Sínodo da Amazônia, que o papa Francisco coloca como ponto crucial o respeito aos povos tradicionais e indígenas, o que tem a dizer a respeito?

Ailton Krenak – Eu estou acompanhando esta discussão que o Vaticano vem realizando na última década, de aproximação da agenda política dos países principalmente da Europa que incidem na periferia do mundo. A Amazônia é um tema emblemático para que a Europa possa refletir na decisão de governos regionais. Eu acho que o papa Francisco está assumindo uma posição política relevante, que ele já deveria ter se adiantado nesta questão, para talvez ajudar a inibir a agressão que o neoliberalismo está fazendo nas economias regionais na América Latina, na África e na Ásia. O Vaticano tem um papel fundamental e responsabilidade também não só no sentido afirmativo de seu lugar, mas de uma responsabilidade que tem se omitido. Com tanto ouro e com tanto poder (historicamente), não pode se omitir deste debate.

350.org Brasil – Na Cúpula do Clima, da Organização das Nações Unidas (ONU) foi lançada a Campanha Fé pelas Florestas, envolvendo diferentes religiões com o propósito da conservação das florestas tropicais e da defesa dos povos indígenas e tradicionais. Qual sua avaliação a respeito?

Ailton Krenak – Tanto as ações do Sínodo da Amazônia, como o Fé pelas Florestas demonstram que já existe uma preocupação global com o desgoverno que estamos vivendo e com a necessidade de mobilizar as comunidades humanas para que tomem o conhecimento e responsabilidade pelos lugares onde vivem. Acredito também que devemos fazer um questionamento, como do porquê de terem sido criadas comunidades eclesiais de base, por exemplo, para se promover a fé na floresta, e terem sido censuradas pela floresta, como também a Teoria da Libertação (no caso da Igreja Católica)? O cuidado é para ter uma convergência ecumênica, que diga uma coisa e faça outra.

350.org Brasil – Como o senhor analisa a pressão que vem aumentando sobre territórios indígenas (TIs) e também sobre unidades de conservação (UCs) para a exploração de recursos naturais principalmente mineral e a questão do mercúrio que incide sobre a saúde?

Ailton Krenak – A ideia de poder explorar as TIs  e UCs, que são os últimos redutos em que o subsolo e as florestas têm sido conservados é uma ofensa  absurda. Temos de denunciar este assalto que corporações têm feito à natureza. Existe necessidade de regulação de quanto ainda podemos incidir sobre a natureza e a terra.

350.org Brasil – Como os povos indígenas defendem o clima?

Ailton Krenak – Se você tem um povo indígena que está vivendo em regiões que não foram afetadas por estradas ou hidrelétricas, por exemplo, o simples modo de vida daquele povo já promove esta regulação de clima e esta proteção da produção de vida. O nosso jeito de viver em qualquer lugar da terra é constante interação da vida das pessoas com a natureza. Aqui no continente americano, cada povo ameríndio dá respostas diversas para a pressão e desestruturação da base natural de nossas vidas, por meio dos processos de colonizações. Fazemos isso com o que guardamos de memória de nossas tradições. Se isso se constitui uma cosmovisão de mundo e que sustenta esta resistência indígena, é comum para os povos andinos, como na parte atlântica do continente. Esta é nossa força que nos faz resistir até hoje.

Sobre a 350.org Brasil e a causa climática

A 350.org é um movimento global de pessoas que trabalham para acabar com a era dos combustíveis fósseis e construir um mundo de energias renováveis e livres, lideradas pela comunidade e acessíveis a todos. Nossas ações vêm ao encontro de medidas que visem inibir a aceleração das mudanças climáticas pela ação humana, que incluem a manutenção das florestas.

Desde o início, trabalha questões de mudanças climáticas e luta contra os fósseis junto às comunidades indígenas e outras comunidades tradicionais por meio do Programa 350 Indígenas e vem reforçando seu posicionamento em defesa das comunidades afetadas por meio da campanha Defensores do Clima. Mais uma vertente das iniciativas apoiadas pela 350.org é da conjugação entre Fé, Paz e Clima.

Sucena Shkrada Resk – jornalista ambiental, especialista em política internacional, e meio ambiente e sociedade, é digital organizer da 350.org Brasil

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