Atendimento por Whatsapp mudou perfil de vítimas da violência doméstica
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Por Joana Suarez –
Marco Zero Conteúdo,
Amazônia Real –
Anonimato encorajou mulheres de bairros nobres do Recife a pedirem ajuda para romper o ciclo de violência
Durante o rigoroso período de isolamento social por causa da Covid-19, no Recife, o Centro de Referência da Mulher Clarice Lispector passou a atender, pela primeira vez, as vítimas de violência doméstica por um número de Whatsapp – (81) 99488-6138 – , que funciona 24 horas. O serviço foi divulgado em carros de som nas comunidades da cidade e em propagandas, já que muitas poderiam estar em casa com os agressores e o atendimento presencial estava reduzido.
Em poucos dias, chegaram mais de 100 pedidos de ajuda ou orientação, informou a coordenadora, Avani Santana. Ela identificou uma mudança no perfil das vítimas atendidas por Whatsapp (em comparação com as presenciais), pois a localização delas passou a ser entre bairros mais nobres do Recife. O anonimato das mensagens pode ter encorajado essas mulheres.
Enquanto a reportagem conversava com Avani e ela mostrava algumas mensagens desesperadas que chegaram nos últimos meses, uma mulher fez contato, escrevendo que o companheiro tinha ido embora com o filho, após ameaçar ela de morte. “Você tem que procurar a delegacia e denunciar o rapto”, escreveu a coordenadora iniciando o atendimento, interrompendo a entrevista.
Neste vídeo, Avani relata um dos primeiros casos atendidos pelo Whatsapp . Por quase duas horas, trocaram mensagens de noite: uma atendente do centro de referência e a vítima trancada no quarto dos filhos, podendo apenas escrever mensagens, pois o agressor estava na casa quebrando as coisas. A coordenadora conta que a funcionária do Centro precisou chamar a polícia no lugar da mulher, convencer o porteiro do prédio a não avisar que os policiais subiriam até o apartamento, informando que o condomínio teria responsabilidade caso ocorresse algo com a mulher. Um roteiro de agonia.
No fim de maio, no Recife, Rosa*, de 30 anos, pegou os filhos Joaquim*, de 13, e Rita*, de 11, colocou poucos pertences em três mochilas escolares e saiu de casa escondida. Foi para junto dos pais, interrompendo 16 anos de um relacionamento violento. A coragem para dar um basta, palavra que repete pronunciando as sílabas com força, veio com o coronavírus que a prendeu em casa por mais tempo com um marido agressivo durante dois meses.
Antes da Covid-19, por medo, ela se trancava no quarto com as crianças sempre que o marido voltava do serviço, bêbado ou não. Com ele em casa sem trabalhar, Rosa passou a ouvir o dia inteiro – invariavelmente aos gritos – as palavras puta, rapariga, desgraçada… O homem retomou o trabalho em esquema de rodízio e Rosa partiu com os filhos. “Deixei tudo lá, meus móveis, minhas coisas, minha TV, porque eu não suportava mais”.
O alívio pelo fim do sofrimento não foi sentido só por ela. “Obrigada por estar ajudando minha mãe nesse caso dela com meu pai”, essa foi a mensagem que Rita, de 11 anos, mandou para a advogada popular Margareth Senna, que atuou no caso de Rosa, para libertá-la da violência doméstica.
Margô, como gosta de ser chamada, auxiliou pelo menos 40 vítimas nesses meses de pandemia, através do Instituto Maria da Penha (IMP), da ONG Tamo Juntas e na Coletiva Mana a Mana, em que é voluntária no Recife e Região Metropolitana. “Com todas as vítimas, percebi que as agressões se intensificaram na pandemia, porque o homem, que não estava saindo para trabalhar, passou a ser violento por mais tempo”, disse.
Foram mais dois anos de “inferno”, nas palavras dela. Foi ameaçada de morte e decidiu, definitivamente, se livrar das agressões. Rosa descobriu o IMP e começou a conversar com psicólogas e assistentes sociais. Margô acompanhou a vítima até a delegacia, conseguiu efetivar a Medida Protetiva de Urgência, além de ações para que o pai pagasse pensão alimentícia (essa ainda em andamento).
Rosa vem de uma família evangélica. Isso atrapalhou bastante a separação dela do agressor e que ela entendesse seu direito de viver sem violência. Margô precisou conversar várias vezes pelo telefone no viva voz com os pais de Rosa para explicar que ela estava certa em deixar o marido, que eles precisavam ajudá-la. Os pais diziam que o agressor ia melhorar, mesmo sem nem pagar pensão. “Ela não queria desagradá-los e pediu ao pastor da igreja para conversar e eles ‘autorizaram’ a medida protetiva”, narrou a advogada.
O pai falava coisas horríveis com as crianças: “imundos, nojentos, filhos de rapariga, vou jogar vocês no lixo”, cita Rosa fazendo uma pausa longa, como quem relembra as cenas. As mulheres suportam a violência na esperança de proteger os filhos. “Os casos mais graves sempre envolvem crianças”, aponta Margareth. Da mesma forma, acrescenta a advogada, eles os utilizam como armas de chantagem.
Para se libertar do marido, Rosa teria que ir para a casa dos pais com dois meninos, foi então aguentando todos esses anos com ele. “Não valeu a pena, não sei o que é um casamento feliz”. Um homem que nunca a deixou trabalhar e a humilhava dizendo que ela só estava comendo por causa dos filhos. “A gente se ilude, pensa que eles são príncipes. Botei um ponto final e agora posso dizer que vivo na paz”.





