Quando o preço engana: o que a COP 30 ensina sobre compras públicas sustentáveis
A oportunidade de Belém de provar que sustentabilidade não é retórica, mas matemática

Por Keule Assis* -
A COP 30, em Belém, não é apenas mais um megaevento internacional. É, antes de tudo, um teste concreto de governança para o Brasil. A montagem da conferência exigiu uma série de compras públicas, de infraestrutura a mobiliário, e recolocou na mesa um debate antigo: o uso do critério de menor preço. É compreensível que se busque evitar o gasto ineficiente do dinheiro público, mas confiar exclusivamente nesse critério está longe de garantir uma decisão técnica, consciente e alinhada ao que o próprio evento representa.
Em um contexto como o da COP, o Edital — especialmente o Termo de Referência — deveria trazer definições claras de qualidade e requisitos ESG. Se isso fosse feito, o preço seria apenas um critério de desempate entre propostas já qualificadas. Sem esse cuidado, o controle posterior se perde, e o risco de entregar uma infraestrutura incompatível com o objetivo do evento se torna evidente.
O dever legal da vantajosidade
O país já tem o arcabouço jurídico necessário para avançar. A Nova Lei de Licitações e Contratos elevou o Desenvolvimento Nacional Sustentável ao centro da tomada de decisão, definindo a Vantajosidade como o princípio estruturante do processo.
O Tribunal de Contas da União reforça essa interpretação ao estabelecer que vantajosidade significa “menor custo e maior benefício”. Ou seja, uma proposta mais cara na largada pode ser, sim, a mais vantajosa se provar menor custo ao longo do tempo.
É exatamente para isso que serve o Custo Total de Propriedade (TCO), ou Custo do Ciclo de Vida (CCV): um instrumento técnico que vai além do CAPEX e incorpora operação, manutenção, obsolescência e descarte. Em bens duráveis, esses custos podem representar mais de 60% do total — e ignorar esse dado é ignorar a própria governança.
Foi o que ocorreu na aquisição de mobiliário e infraestrutura para a COP 30, como no caso do Complexo Hoteleiro Vila Líderes. Sem TCO no Edital, a decisão se baseou apenas no preço de prateleira, criando risco ao erário e um legado de infraestrutura descartável. Não é apenas uma falha econômica: é estratégica.
A prova de mercado e o design consciente
O mercado já mostra que sustentabilidade é viável, técnica e financeiramente. Na NPlattaforma, comprovamos isso com a Coleção Raiz, construída com design circular, materiais rastreáveis — eucalipto de manejo sustentável, tecidos reciclados, fibras amazônicas — e impacto social. Demonstramos que é possível escalar rigor, qualidade e logística sem abrir mão do propósito.
O paradoxo, no entanto, é que a própria morosidade das licitações impediu parte do impacto previsto, incluindo a descentralização produtiva para fábricas no Pará, o que reduziria em 60% a pegada de carbono logística. É uma lição dura: quando a governança falha, ela limita o impacto social e estrangula o desenvolvimento da bioeconomia, mesmo quando a iniciativa privada está disposta a avançar.
O processo de transição e o debate da cota ESG
Esse debate não pede radicalização, mas maturidade. A transição para compras públicas alinhadas ao ESG é um processo gradual, que exige tempo e preparação. E é evidente que nem todo o setor privado está pronto para cumprir exigências rigorosas de imediato.
Por isso, defender a indução de mercado é essencial. Uma Cota Mínima Compulsória — por exemplo, destinar 20% do valor licitado a produtos socio-ESG — daria previsibilidade e estimularia investimentos em certificação e compliance. Se vinculada a instrumentos sérios, como o Selo Amazônia, essa cota se transformaria em um filtro real contra o greenwashing e em um mecanismo direto de fortalecimento regional.
A própria NLLC já prevê Margens de Preferência para bens reciclados, recicláveis e biodegradáveis. Usar esses instrumentos estrategicamente é o que permitirá uma transição responsável.
O legado de Belém
O debate sobre compras públicas sustentáveis precisa sair da retórica e entrar no campo da técnica. Belém teve a chance de licitar pelo valor, não pelo preço, e mostrar ao mundo como a governança brasileira pode estar alinhada ao propósito do evento que acolhe. Não aproveitamos essa oportunidade por completo.
A pergunta que fica é simples e determinante: estaremos preparados para a próxima?
*Keule Assis é Engenheiro de Produção (FEI) e pós-graduado em Administração Industrial (POLI-USP), com mais de 20 anos de experiência em gestão de suprimentos, logística e desenvolvimento de produtos. Atuou como Executivo Chefe da Divisão de Móveis da Tok&Stok, liderando projetos que revolucionaram o mercado brasileiro com coleções icônicas e práticas sustentáveis. Foi Diretor de Móveis da Novo Mundo e, desde 2020, dedica-se ao e-commerce, criação de coleções e inovação em modelos de negócios digitais. Fundador da OLINC, idealizador da startup KM Fast e cofundador da NPlattaforma.





