“Facts are stubborn things”. Frase de John Adams (1735-1826), segundo presidente dos Estados Unidos, estampada em cartaz durante protesto contra as posições anticiência de Donald Trump em fevereiro, na cidade de Boston.
Um candidato à presidência de um país nega, durante campanha eleitoral, consenso científico amplamente estabelecido em décadas de pesquisas sérias sobre fatos de grande impacto global. Após ser eleito, mantém posição ambígua e nomeia negacionistas como altos dirigentes de seu governo. Esses dão visibilidade a uma minoria de “cientistas” negacionistas e suspendem – ou atrasam – a implementação de políticas públicas de mitigação.
A descrição caberia nas palavras, ações e intenções do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mas refere-se, na verdade, ao que aconteceu entre 1999 e 2008 na África do Sul, durante a presidência de Thabo Mbeki. O dirigente sul-africano negou obstinadamente que o vírus HIV fosse a causa da AIDS e, com isso, atrasou em uma década o uso de antirretrovirais no sistema público de saúde do país.
Alguém poderia atribuir tamanho obscurantismo científico a um baixo grau de desenvolvimento de um país, com diminuta capacidade de apropriação da melhor ciência para benefício da população. Ou poderia dizer que tal postura seria típica de regimes totalitários, em que a ciência deve conformar-se à ideologia. Esse teria sido o caso, por exemplo, de Trofim Lysenko, presidente da Academia de Ciências Agrícolas da União Soviética, negando a genética mendeliana e atrasando o avanço da agricultura local entre 1920 e 1964.
Entretanto, um exemplo de obscurantismo científico no que toca à política e às mudanças climáticas acontece hoje nos Estados Unidos, país que é a grande potência científica mundial, cuja comunidade de pesquisadores é a que mais contribui para o avanço do conhecimento sobre o aquecimento global antropogênico e as mudanças do clima no planeta.
Contraponha o cenário atual ao legado do ex-presidente americano Barack Obama. Em 2015, na construção de consensos meses antes da Conferência do Clima da ONU, em Paris, os Estados Unidos firmaram vários acordos bilaterais. Um deles com o Brasil. Em junho daquele ano, os presidentes dos dois países assinaram acordo de cooperação para reduzir as emissões de gases do efeito estufa. O documento estabelece, por exemplo, as metas de 33% de energias renováveis na matriz energética brasileira e de 20% de renováveis na matriz elétrica – além da contribuição da hidroeletricidade em ambas metas – até 2030. O acordo prevê também parcerias para tornar a agricultura de ambos os países mais produtiva e com menos emissões.
Se a administração Trump der as costas ao histórico Acordo de Paris, de 2015, as consequências diplomáticas serão imensas e negativas para os Estados Unidos em todas as dimensões – e numa escala muito maior do que foram as repercussões diplomáticas desfavoráveis quando George W. Bush retirou o país do Protocolo de Kyoto, em 2001, como admitido pelo próprio ex-secretário de Estado, Collin Powell. O ex-presidente chegou a dizer meses depois do ocorrido que um dos motivos para ter rejeitado Kyoto era que o protocolo prejudicava a economia americana.
Dezesseis anos mais tarde, Donald Trump volta a usar um discurso semelhante como justificativa. Mas o estilo imprevisível do atual presidente americano não permite antever se sua administração chegará ao extremo de retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris. Inegável é que, desde que assumiu a Casa Branca, o republicano escolheu negacionistas do aquecimento global para desempenhar altas funções, um claro sinal de retrocesso no ritmo de implementação das medidas de redução de emissões necessárias para atingir as metas preconizadas em Paris, de manter o aumento da temperatura global abaixo de 2°C.
O lado otimista da história é que o movimento mundial de desinvestimento em termoelétricas a carvão pode ser mesmo um caminho sem volta – e, então, não caberiam retrocessos. Além disso, está suficientemente demonstrado por fatos econômicos que as energias renováveis têm potencial para gerar milhões de empregos nos Estados Unidos e sua adoção em massa, longe de impedir o crescimento do país, impulsionará o desenvolvimento da gigantesca economia americana. Centenas de empresas e investidores americanos chegaram a pedir durante a campanha eleitoral que a Casa Branca não abandonasse o acordo climático, afirmando que o fracasso dos Estados Unidos em construir uma economia de baixo carbono ameaçaria a prosperidade nacional.
Mas o risco de os Estados Unidos deixarem o Acordo de Paris existe. Se isso acontecer – ou se o país colocar o pé no freio de sua implementação –, outros países já se preparam para ocupar o vácuo, principalmente China e Alemanha, projetando-se como líderes mundiais em tecnologias limpas.
Ainda que a cooperação científica e tecnológica com os Estados Unidos na questão climática, energética e agrícola seja de interesse estratégico para o Brasil, teremos que seguir adiante o curso do protagonismo que construímos em ações concretas de mitigação das mudanças climáticas. Não nos faltam desafios nessa área, como o de reduzir urgentemente o desmatamento na Amazônia e no Cerrado, e aumentar em muito a presença das novas energias renováveis em nossa matriz energética.
O obscurantismo do presidente Mbeki custou a vida de mais de 330 mil sul-africanos, que não tiveram acesso aos antirretrovirais capazes de lhes prolongar a vida. A irresponsável cegueira do presidente Trump na questão climática poderá ter um impacto infinitamente maior e por muitas décadas ou séculos para o planeta Terra e todas as espécies vivas, inclusive o Homo sapiens, se ultrapassarmos algum limite planetário sem volta.
* Carlos Nobre é climatologista, membro da Academia Brasileira de Ciências, membro-estrangeiro da Academia de Ciências dos Estados Unidos e senior fellow do WRI Brasil
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