Quanto pesa a economia global? Para a sabedoria econômica convencional, a pergunta é completamente esdrúxula. Faz parte das primeiras lições da disciplina a ideia de que a única forma de comparar banana, ferro, computador e restaurante é por meio daquilo que se paga pelos produtos e pelos serviços. O que há de comum ao mundo das mercadorias é que elas são escassas e é da escassez que decorrem seus preços. Dizer que a soma dos bens e serviços produzidos no mundo em 2017 sobe a US$ 31 trilhões ou que o produto médio anual per capita é de quase US$ 4 mil faz todo o sentido. Mas qual o peso daquilo que está na origem das utilidades de que desfrutamos, esta não é uma pergunta que integra a tradição mais consagrada da ciência econômica.
Esta tradição vem sendo contestada, já há algumas décadas, sob o ângulo científico, por meio da ecologia industrial. A base desta contestação é que apesar de sua inegável importância, o valor de mercado dos bens não é capaz de sinalizar adequadamente o uso que deles fazem as sociedades humanas. As 23 conferências climáticas realizadas até hoje e as dezenas de tentativas de taxar a emissão de gases de efeito estufa ainda não conseguiram incorporar ao sistema de preços os danos provocados pelas mudanças climáticas. O que se paga pelos antibióticos não inclui o excesso em seu consumo (sobretudo pelas criações estabuladas) e os estragos provocados pela crescente resistência que sua descarga no ambiente vem causando.
Mas este raciocínio aplica-se também aos materiais básicos que compõem a riqueza. Que a melhoria nos padrões de vida conduza a maior consumo de materiais, é intuitivo, que se trate do local onde as pessoas moram, daquilo que comem, de seus deslocamentos ou das infraestruturas de que dependem. Mas é fundamental ampliar a eficiência no uso destes materiais. É para isso que foi formado, em 2007 o Painel Internacional de Recursos, por parte do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
A palavra que o define, decoupling, pode ser traduzida como desacoplamento, ou descasamento: trata-se de alcançar mais riqueza sobre a base da extração e do uso de cada vez menos materiais. Da mesma forma que o mundo se esforça hoje para descarbonizar a vida econômica, é fundamental igualmente satisfazer as necessidades humanas usando menos materiais por unidade de riqueza oferecida.
Os especialistas reunidos pelo Painel trabalham em torno de quatro famílias de materiais: biomassa, combustíveis fósseis, minerais metálicos e minerais não metálicos. Seu primeiro relatório, lançado em 2011 mostrava que, em meados da primeira década do milênio, o peso destes quatro materiais chegava a 60 bilhões de toneladas. Cada ser humano em média consumia, anualmente, nada menos que nove toneladas de materiais. Só que a distribuição deste consumo era altamente desigual. A “pegada material” (material footprint) da Índia era de quatro toneladas. A do Canadá subia a 25 toneladas per capita. Achim Steiner, que dirigia o PNUMA à época, preconizava que o consumo per capita de materiais, num mundo cada vez mais rico e de população crescente, deveria reduzir-se a cinco ou seis toneladas no máximo.
O Painel acaba de lançar seu último relatório e suas informações vão no sentido contrário ao preconizado apenas seis anos atrás por Achim Steiner. O consumo dos quatro materiais estudados pelo Painel atinge 88,6 bilhões de toneladas ao final de 2017. O consumo per capita pulou de nove para 11,4 toneladas em uma década. Embora o grande aumento tenha sido na Ásia, o que reflete vitórias importantes na luta contra a pobreza na China e na Índia, é fundamental destacar que o norte-americano médio usa anualmente 30 toneladas e o europeu 20 toneladas de materiais. Americanos e canadenses consomem dez vezes mais materiais per capita que os habitantes da África ao Sul do Sahara.
É importante também observar que, contrariamente ao que se poderia esperar das mudanças tecnológicas trazidas pela revolução digital, a produtividade material das economias contemporâneas está estagnada ou em queda. Isso se explica pela transição de parte do produto global de economias eficientes como o Japão para sociedades bem menos eficientes como os BRICS. “A população e a afluência foram fortes determinantes no aumento da pegada material. A inovação e a mudança tecnológica pouco fizeram para mitigar este crescimento”, conclui o relatório.
Quais as consequências destas informações para o crescimento econômico? O relatório destaca países (Japão, Alemanha, Áustria, Finlândia, Bélgica e Reino Unido), que já incluem a pegada material de suas economias no sistema de contas nacionais. Sobre esta base o Japão elabora indicadores e metas para chegar a uma “sociedade saudável sob o ângulo de seu ciclo material”. A Áustria quer aumentar a eficiência no uso de recursos em 50% entre 2008 e 2020.
Coisa de país desenvolvido? A China aprovou em 2009 a “Lei de Promoção da Economia Circular”. Entre 2011 e 2015 o 12º Plano Quinquenal estabeleceu a meta de aumentar a produtividade dos recursos em 15% com a implantação de projetos pilotos em mais de mil empresas e parques industriais até o final de 2015. Uma segunda etapa do plano (2016/2020) já está em vigor.
Até aqui, não há por parte nem do Governo nem das principais organizações empresariais brasileiras qualquer sinal de que o crescimento econômico, cujo retorno os brasileiros desejam em 2018, tenha a orientação estratégica que norteia a transição dos países acima mencionados. Sem isso, o crescimento pode até vir, mas vai ampliar nossa distância da fronteira tecnológica e cultural do mundo atual. Por isso, um dos importantes votos para 2018 é que a economia circular comece a fazer parte da vida dos brasileiros.
Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA. Autor de “Muito Além da Economia Verde” (Ed. Planeta Sustentável, SP, 2012). Coautor de Lixo Zero: Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade Mais Próspera.
Publicado originalmente pelo jornal Valor Econômico