por Samyra Crespo, especial para a Envolverde –
Já tinha um texto pronto sobre o “varejo sustentável”, mas diante do impacto do relatório recém divulgado da ANVISA que afirma ter analisado 4,6 mil amostras coletadas em supermercados em 77 cidades e concluído que mais de 70% dos alimentos amostrados são “seguros”, mudei o rumo da prosa – e resolvi escavar mais fundo essa confortável superficialidade de achar que então a “farra dos agrotóxicos” (cerca de 330 liberados em pouco mais de um ano) é histeria de ambientalista. Não é.
Para ajudar a situar adequadamente o quesito “segurança” vou utilizar o texto de alguém que conhecia a indústria agroquímica por dentro, tendo a ela servido por anos. Até que deu um “basta!” e se tornou um dos mais aguerridos denunciadores do envenenamento diário, letal e sistemático dos agrotóxicos.
Falo de José Lutzemberger (1926-2002) que fundou há mais de 4 décadas o instituto AGAPAN – ONG, e mais tarde, em 1987, a Fundação Gaia, ambos no sul do País. Missão? Revelar para os leigos o que a danosa prática do uso repetido e crescente dos agrotóxicos nas lavouras faz com o meio ambiente e com a saúde humana. Foi um precursor incansável. Conhecia os meandros da indústria e seu marketing agressivo. Agrônomo e químico formado (experiente) sabia identificar nas fórmulas os elementos perigosos. Trabalhou na indústria de grande porte e internacional. Sabia bem como operam essas fábricas de morte.
Lutz, como o chamávamos – como a um tio mais velho – além de palestras deixou inúmeros artigos publicados em jornais e revistas, ainda úteis para entender a problemática.
Chegou a ministro do Meio Ambiente, em meio ao turbilhão da Rio 92 – mas foi defenestrado. Sua franqueza ao denunciar a corrupção no Brasil num seminário internacional, selou sua sorte no então Governo Collor.
Lanço mão aqui de um texto seu, muito instrutivo, que está num pequeno livro de bolso da LPM: Manual de Ecologia – do Jardim ao Poder. O livro é uma coletânea e foi publicado e 2004, após sua morte.
Ele fazia um distinção fundamental entre os “domotóxicos” (inseticidas domésticos) e os “agrotóxicos” usados massivamente na produção de alimentos.
Para se ter uma ideia do tamanho do que estamos enfrentando, nos diz Lutz: “a presença dos agrotóxicos está no campo, na floresta, no silo e no alimento; aditivos para efeito conservante ou cosmético, hormônios, sulfas, antibióticos, arsênico, corantes e uma enxurrada de outros elementos que são dispersados no ambiente aéreo, nos efluentes líquidos, que percolam e atingem os rios, o solo, o mar. ” Uma centena de venenos mutagênicos. Que atingem a flora, a fauna e a nós, humanos.
Quanto aos inseticidas domésticos, ele se insurge contra a “falsa segurança ” veiculada pelos anúncios que mostram bebês dormindo tranquilos no berço após a borrifagem de sprays sabidamente venenosos: ” Noite após noite a criança é submetida à inalação, durante anos, de carbamatos, dicloros, diazinon, ácido crisantêmico, que podem atacar o sistema nervoso central, o respiratório, o imunológico “.
Depois nos perguntamos porque a criança é insone, asmática, alérgica.
Quando a ANVISA nos diz que 23% das amostras de alimentos analisados apresentavam resíduos de agrotóxicos e que “apenas” 17% indicavam níveis acima do permitido, o que isso quer dizer?
Foram analisados arroz, beterraba, goiaba, uva, abacaxi, uma lista grande (que pode ser obtida juntamente com o Relatório).
E se nós estivermos entre os 17% de infelizes consumidores? Estamos numa roleta russa? Um jogo de azar? É aceitável este nível de incerteza?
O problema com os agrotóxicos – e é este mesmo o nome pois “defensivo” é outra coisa – está não só no excesso que encontramos nos alimentos mais consumidos, mas o “efeito cruzado” entre eles, nos alerta Lutz, profundo conhecedor do assunto, repetimos.
Não dispomos de estudos conclusivos, porque muitos dos efeitos são ignorados, sobre a “química” que ocorre nos organismos vivos com o cruzamento dessas substâncias. Estudos vem relacionando o glifosato ao fenômeno do autismo e até do Alzheimer. Inúmeros cânceres, tumores e deficiências hepáticas estão no rol dos tristes resultados da ingestão destes elementos químicos e do seu efeito cruzado.
Vocês podem me perguntar, ao final dessa alarmante leitura, o que fazer?
Se puder, corra para orgânicos. Lute pela transparência e correta atuação da ANVISA. Apoie o movimento do “Diga não ao veneno no seu prato”.
Denuncie os abusos da indústria agroquímica e sobretudo não caia no papo de que este Ministério da Agricultura está cuidando da sua segurança ou a de seus filhos. Não está.
Quanto à industria, bem, ela tem um negócio de mais de um trilhão de dolares para defender. E muito dinheiro para financiar seu funesto lobby.
Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.
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