Opinião

Preconceito, Cultura, Política e Utopias (X)

por Samyra Crespo –

A juventude e o ambiente universitário  

Nunca fui presa nem torturada. Mas a geração acima da minha (com cerca de 10 anos ou mais) foi. Tenho amigos e amigas que sobreviveram e carregam sequelas. No corpo e na alma.

Já eu, até os 20 anos nunca tinha visto um morto.

Até os 10 nunca tinha pisado num ambiente rural de verdade nem tinha encarado a pobreza indigna – e quando a vi ela era o “povo de rua”, mendigos, deserdados da sorte, morriam à noite, congelados nas ruas do centro de São Paulo. Passava uma Kombi da Fundação João XXIII e recolhia aqueles corpos anônimos.

A juventude, excetuando tragédias individuais, nunca é inteiramente triste. Tem a experiência do riso, da música, do fumo, do álcool, do sexo e da camaradagem. Rivalidade e competição é coisa da vida adulta.

Por isso, o ambiente da Universidade – a USP, onde me graduei e também fiz minha pós graduação, foi um banho de água fria na minha expectativa de ingressar finalmente num meio intelectual livre e instigante.

Havia patrulhas por todo canto. Do café que você tomava ao livro que lia, o modo de vestir e o que bebia.
Como em todo lugar – aprendi logo – você tinha que escolher uma tribo.

Havia os “revolucionários do bar” – o Rei das Batidas, na entrada da Cidade Universitária. Jovens discutiam política e ficavam bêbados, pouco iam às aulas.

Havia o centro acadêmico, naquela época dominado pela LIBELU – Liberdade e Luta, rapazes barbudos e meninas que fumavam e falavam palavrões. Eu os achava caricatos, mas boa gente. Organizavam passeatas relâmpago – proibidas pelas autoridades – e nos ensinavam a jogar bola de gude nas patas dos cavalos bem como a nos proteger, com lenços molhados, dos gás lacrimogêneo que era então jogado para dispersar os estudantes. Nessas passeatas também usavam cães e jatos de água em carros tanques.

Havia a turma do CRUSP, moradia em tese dos estudantes pobres, ou que vinham do interior. Funcionava como uma verdadeira favela estudantil, onde a higiene passava longe. Podia-se sentir o cheiro de maconha a um quilômetro.

Funcionava como uma espécie de terreno livre, uma zona franca. A polícia sempre falava em fechar, mas não fechava. Tinha invadido e fechado aquela parte do Campus uns anos antes de eu ingressar. Mas os estudantes a retomaram na marra. Era uma “ilegalidade tolerada”.

E havia os “CDFs” ou cabeções, que enchiam as bibliotecas, alheios à sedução da militância.

Nas lanchonetes da Aliança Francesa e outras na entrada da USP, esbarrava-se com os alunos da classe média que estudavam à tarde. À noite, podíamos ver os alunos pobres disputarem o “bandejão ” – refeição que os frequentadores dos cursos noturnos podiam ter por um preço simbólico.

Não havia livrarias ainda, e acho que a Edusp nem existia. Em cada unidade ou curso era tolerada uma banca: vendia os livros oficiais e os proibidos.

Eu passava todo o tempo livre na universidade.

Consegui, nos Diários Associados, meu emprego na época, me engajar no projeto de renovação do principal periódico do Grupo. Significava trabalhar menos pelo mesmo dinheiro. Haviam comprado as primeiras máquinas de impressão a laser, e estavam experimentando lançar um “jornal de segmento”. Veio a ser o “Guia do Imóvel “, semanal, sucesso de venda em banca, pois concentrava os classificados, fonte lucrativa para todos os jornais da época.

Tornei-me editorialista do tablóide por três anos, tendo como parceiro o chargista Nicolielo (ilustrador das minhas matérias) – bastante conhecido na época. Especializei-me em Habitação e financiamento do sistema, e ganhei tempo para estudar. Por essa, digamos “janela” vi a expansão de São Paulo, as maracutaias todas para mudar a Lei do Zoneamento, construir onde não se podia. Vi o Rio Pinheiros espumar – literalmente – contaminado por tensoativos de detergentes e sabões, após as chuvas de verão.

Aos poucos, uma pauta ecológica começou a ganhar as páginas censuradas dos jornais: Cubatão, Caucaia do Alto, a poluição do ar, dos rios e da represa Billings, a “Guandu” paulista. Em vez de política, as mazelas da cidade grande e voraz no consumo de espaços e recursos.

Então, meu primeiro interesse pela ecologia se deu pela pauta urbana; chegou até mim por necessidade profissional.

Voltando à USP, depois deste parêntese: me apaixonei pelo Curso de História. Por dois intensos anos só queria saber de estudar os períodos antigo e medieval. Traduzindo, cultura clássica e tudo, tudo mesmo sobre a Cristandade (período em que a Igreja, junto com o Estado, forjou a Europa).

Digamos que este programa me afastou espiritualmente daquela “balbúrdia estudantil” do bar, das tentativas de greve, das ameaças de fechamento do CRUSP, e dos manuais de como ser um estudante profissional do “movimento estudantil”.

Resolvi tirar notas boas, estudar para chuchu e discutir política com meus colegas jornalistas, adultos e experimentados. A Cidade Universitária era uma espécie de outro mundo, quando quase tudo acontecia no centro de São Paulo, em torno dos prédios dos principais jornais, com o Estadão reinando imperial na esquina da Major Quedinho.

Mas essa postura mais descolada da movimentação estudantil mudou com a tempestade perfeita: a morte de Herzog, depois do operário Fiel Filho, ambos no período Geisel, e a esperança de fazer a transição da Ditadura para o que chamamos hoje de “Democratização “. O clima “Diretas Já “- já estava no ar há muito tempo.

Havia uma efervescência e ela transbordava.

Me uni a um grupo para ler “Marx no original”, sob a orientação de um famoso professor das Ciências Sociais; a ideia era resgatar o seu pensamento das grosseiras adaptações: Althusser, estruturalismo e outras coisas que não dá para explicar aqui. Fica como código para quem viveu. O curso, uma optativa (nome que se dava a matérias nao-obrigatórias) chamada Sociologia Agrária e era, na verdade, uma leitura sistemática da obra mais difícil do teórico alemão: Os Gundrisses – cadernos com as anotações e pensamentos do Mestre. Depois passamos ao Capital. Leitura esnobe e exegética. Mas que nos propiciou repassar a principal bibliografia marxista disponível.

A turma era pequena, de alunos experimentados, a maioria já dando aulas em escolas secundárias ou cursinhos.
Nessa incursão, fortemente temperada pela realidade fora da universidade, aproximei-me de novo dos comunistas. Desta feita, por paixão intelectual.

O curioso é que os comunistas ligados ao PC, clandestino, eram considerados “a direita” do movimento socialista e também do estudantil. Um partido de velhos, de gente que queria juntar todo mundo numa ampla frente democrática.

Não vou detalhar aqui este saco de gatos que era a esquerda, e ainda é. Havia siglas para todos os gostos. E medo dos dedos-duros, dos infiltrados, das delações.

Só posso dizer que cheguei aos anos 80 com essa bagagem.

Até então, eu nunca tinha votado para presidente da República. A democracia era, ainda, uma doce miragem.
E no próximo texto conto mais.

… continua no próximo Post.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.

(#Envolverde)