Opinião

Preconceito, Cultura, Política e Utopias (XX)

por Samyra Crespo – Pesquisa e conversão – 

Vocês já ouviram falar da piada acadêmica que diz ser o antropólogo o cientista que casa com seu objeto de pesquisa. O sertanista casa com a índia, Pierre Verger se tornou pai de santo na Bahia, e eu me tornei ambientalista estudando o ambientalismo. Ou seja, não é só antropólogo que se presta ao súbito amor pelos objetos, tornando-se defensores de causas relacionadas aos mesmos.

Se isso, quer dizer a aproximação com o que estudamos, tira ou não nossa “neutralidade” – ou prejudica nossa objetividade é outros quinhentos que não vou discutir aqui. Fica a provocação.

Como já mencionei, em 1991 iniciei um estudo compreensivo do que significava o ecologismo no Brasil. Era um projeto ambicioso e acontecia às vésperas da Eco 92 ou Rio 92, ou oficialmente da CNUMAD (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento).

Queríamos entender o tamanho da literatura sobre o assunto publicada no Brasil; estimar o tamanho e a importância das lideranças do movimento; indagar aos brasileiros médios (nome que se dá a uma amostra da população) o que sabiam sobre o assunto, e que lugar os chamados problemas ecológicos ocupavam na lista das prioridades da “agenda pública. Em resumo, um estudo qualitativo com entrevistas e um survey quantitativo, tipo Ibope, utilizando uma base amostral que pudesse ser identificada com as características da sociedade brasileira. Era uma iniciativa inédita e foi uma sorte que tenha despertado o interesse de tanta gente que a tornou possível. Foi quase um projeto coletivo.

Começando do fim, a pesquisa logo se tornou uma série e eu a repeti – como coordenadora e pesquisadora principal – durante 20 anos, cinco edições, uma a cada quatro/cinco anos. Produzi uma série histórica, como se diz – um estudo longitudinal, que me dá segurança para afirmar algumas teses sobre como evoluiu a “consciência ambiental” no País de 1991 a 2012 (quando realizei o último painel, no âmbito da Rio + 20).

Esta pesquisa que passou a se chamar “O que o Brasileiro pensa do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável”, a partir da segunda edição, retrata a minha própria conversão.

Com a bibliografia que tive que levantar no início dos anos 90′ – entrei em contato com um universo eclético de livros teóricos, ativistas (manifestos e panfletos) e técnicos. Com a pesquisa qualitativa entrevistei dezenas de lideranças, conhecendo-as pessoalmente, pois – como já falei aqui – não éramos conectados pela internet como hoje. Era preciso telefonar, mandar emails que não funcionavam para todo o Brasil, viajar para diferentes estados e regiões, falar cara a cara com malucos, entusiastas, apaixonados, utopistas, religiosos, fanáticos, todos eles com um denominador comum: a crença de que o Planeta estava sendo esgotado por um sistema de produção predatório, por uma cultura hegemônica que tinha nos “separado” da natureza. Imperava a crença – que os levava à ação – de que era possível construir novas relações sociais em cima do mantra “salvar a natureza”. Save the planet. Era salvacionismo pra todo lado e denúncia dos mal feitos.

Essa pesquisa que mudou a minha vida e me fez mudar de turma, tomou ares de um projeto coletivo no seu início. O CNPq tinha colocado um recurso que não era suficiente para pagar um instituto de pesquisa tipo Ibope ou Data Folha, os mais prestigiados da época. Eu e o Pedro Leitão (que no futuro se tornaria o primeiro diretor executivo do FUNBIO) montamos então um plano para alavancar parcerias institucionais e fazer o que hoje chamamos de fundraising. Ele era diretor do Mast, conhecia bem as autoridades da área de Ciência e Tecnologia. Eu era chefe do departamento de pesquisa e conhecia bem três turmas: a dos acadêmicos e a dos jornalistas; a das ONGs de desenvolvimento. Naquela época networking era nossa caderneta de telefones. Por intermédio de Marcel Burstyn, professor da UNB, e amigo de Pedro, chegamos ao Eduardo Martins e conseguimos a parceria do Ibama. Naqueles tempos o Ibama era o mais importante órgão ambiental. O Ministério do Meio Ambiente ainda não existia. Eduardo Martins era presidente do Ibama, uma espécie de ministro todo poderoso. Ficou entusiasmado com a pesquisa e nos colocou em contato também com o Fabio Feldmann – o mais jovem constituinte, ambientalista responsável pelo capítulo sobre Meio Ambiente da Constituição de 1988. Fábio tinha um perfil alternativo, ia para o Congresso de bicicleta e seu apê era uma república de ativistas. Eu já o conhecia de Sampa e das querelas em torno do polo petroquímico de Cubatão.

Telefonei para Randau Marques, jornalista que conhecia de São Paulo e ele me contou que Rodrigo Lara Mesquita, um dos “príncipes” da dinastia dos Mesquitas dirigia a Agência Estado – e que começava um projeto novo: criar uma newsletter especializada em temas ecológicos – uma espécie de notícias quentes sobre tudo que interessava na Conferência já marcada para junho de 1992 – no Rio.

Acontece que Rodrigo tinha sido meu colega na USP, no curso de História. Marquei uma reunião e lá fomos – Pedro e eu para São Paulo.

Lá nos encontramos com Rodrigo, Liana john (jornalista jovem e engajada) e Clayton Lino um ambientalista interessado em cavernas e patrimônio rupestre, hoje muito conhecido pelo seu trabalho junto às Reservas da Biosfera. Fizemos de pronto uma parceria. A pesquisa seria apoiada pela Agência Estado e teria espaço privilegiado no Estadão e Jornal da Tarde. Além disso pagaria diretamente ao Ibope o survey que tínhamos planejado.

Então tínhamos o apoio de dois órgãos governamentais de peso: CNPq e Ibama, da imprensa, de jornais top, faltavam a Academia e as ONGs.

Não queríamos fazer uma pesquisa “chapa branca” que fosse logo contestada pelos ativistas. Queríamos que a pesquisa fosse legítima para os diferentes entes políticos.

Foi quando Hector Leis, que na época estava na área de estudos internacionais da PUC, me falou de Eduardo Viola, cientista político e professor da UFSC.

Ao ler um artigo de Viola falando dos doze segmentos de opinião que faziam diferença na compreensão e disseminação das ideias ecológicas, embrião de suas ideias em torno do “ambientalismo multissetorial” (conceito que desenvolveu depois), fiquei convencida de que a pesquisa precisava de um comitê acadêmico. Convidei Viola para presidi-lo. Ele participou da eleição dos temas que abordaríamos e ajudou com mini conferências a treinar nossos pesquisadores, uma equipe de doze bolsistas. Ficou muito envolvido e nos tornamos amigos.

Foi uma loucura. O desafio era fazer um estudo daquela envergadura, com rigor técnico, credibilidade acadêmica e que estivesse pronto um pouco antes da Conferência.

Para agilizar as entrevistas selecionamos 72 (setenta e duas) lideranças em todo o Brasil, dentro da ótica multissetorial de Viola. Foram incluídos militares, ativistas ecologistas, acadêmicos, lideranças socioambientalistas, ecofeministas e parlamentares. Também técnicos que atuavam nas agências de controle do meio ambiente. Lúcia Costa, uma bam-bam-bam da pesquisa de mercado ajudou no treinamento de entrevistas que tinham de ser objetivas e com uma metodologia bem definida, pois o tempo urgia e as transcrições eram trabalhosas. Tudo gravado com fita K-7. Tecnologia dinossáurica.

Uma coisa leva à outra, Viola me colocou em contato com um grupo pequeno de cientistas sociais que se reunia para discutir “meio ambiente e sociedade” na ANPOCS (Associação Nacional de Pesquisa de Pós-Graduação em Ciências Sociais). Eu participava de um outro grupo na ANPOCS, o de “Religião e Sociedade”. A ANPOCS era a reunião acadêmica mais importante do país, vinha gente de todo lado, convidados estrangeiros. Creme do creme. Fui migrando do grupo anterior para aquele em que conheci gente valorosa e interessante como Leila e Lúcia Ferreira, irmãs do NEPAM/Campinas, Pedro Roberto Jacobi da USP, Julia Guivant e Viola da UFSC (na época casados); José Augusto Pádua e Hector Leis, do Rio, Clóvis Cavalcante, de Recife.

Assim, com dois crachás (o do CNPq e o do ISER), estive nos dois espaços da Conferência do Rio. Com a pesquisa pronta e divulgada e com a nova turma – que me recebeu sem torcer o nariz, saí desta história mudada. Em poucos meses após a Rio 92, o ISER me ofereceu a coordenação de um curso que completaria o meu processo de conversão.

O Curso se Chamava Teoria e Prática do Meio Ambiente. Era o ano de 1993.

Dele e da militância ambiental no ISER falarei no próximo texto.

Para quem está achando tudo isto comprido demais, aviso: chegando ao final. E só puxei alguns fios.

… continua no próximo Post.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.

(#Envolverde)