por Jaime Gesisky
Se você é daqueles consumidores preocupados com a origem dos frutos do mar que consome, e quer servir no almoço de domingo um prato que tenha peixe, lagosta ou camarão pescados de forma sustentável, sem degradar o ambiente marinho, vai ter de andar muito para encontrar. Na extensa costa brasileira, de cerca de oito mil quilômetros, raros são os pescados que vêm de uma cadeia produtiva que leva em conta as relações sociais e ambientais envolvidas na pesca.
Enquanto esse almoço não sai, o bioma marinho brasileiro sofre intenso processo de degradação. A poluição do mar chega a níveis alarmantes. O excesso de pesca põe em risco as espécies. E o desmatamento ilegal atinge os mangues, ameaçando os berçários da vida marinha.
É como se fosse uma floresta, que vai sendo descaracterizada em suas feições naturais. Pois o Brasil tem uma Amazônia Azul, em forma de oceano, e que está mais ameaçado do que a floresta, em terra, sem que saibamos sequer o que existe dentro dele. Há pouquíssimos recursos para a conservação, e as áreas protegidas nos ambientes marinhos não chegam a dois por cento de todo o bioma. Bem longe do compromisso internacional de ter dez por cento sob proteção até 2020.
Um esforço tremendo de algumas ONGs tenta mudar esse quadro. As iniciativas vão desde a revalorização de antigas técnicas de pesca, novas práticas industriais e de mercado e até mesmo a valorização da gastronomia, na maré que une chefs e consumidores em busca daquele almocinho com gosto de consciência tranquila.
Para a coordenadora do Programa Marinho do WWF-Brasil, Anna Carolina Lobo, o Brasil precisa urgentemente ver o mar com outros olhos. Nesta entrevista, ela conta como as ONGs estão tentado melhorar essa relação e fazer com que olhemos um pouco além da linha da praia.
Não lhe parece estranho o Brasil cantar o mar em verso e prosa – que o diga Dorival Caymmi –, ter esse tema tão arraigado na cultura, na religião e nas artes de modo geral, viver na praia e, ao mesmo tempo, estar de costas para o mar e desconhecer o tamanho do estrago que estamos causando ao ambiente marinho?
O problema é que a relação do brasileiro com o mar termina na praia. E mesmo lá, a coisa não vai muito bem. As praias estão poluídas por esgoto, lixo. O problema do plástico é alarmante. Há um comportamento predatório em relação ao mar. Os recursos pesqueiros são coletados à exaustão. Já quase acabamos com a sardinha, antes abundante na nossa costa. E outras espécies vão na mesma rota. Temos de ir cada vez mais longe no mar para conseguir pescar. Sem contar os pesqueiros piratas que vêm com frequência. Não temos monitoramento suficiente da costa, e muitos dos subsídios para a pesca são perversos, incentivando a atividade sem considerar a sua sustentabilidade. Não dá para saber se as espécies ameaçadas de extinção estão sendo coletadas, se os defesos (períodos de reprodução das espécies) estão sendo respeitados.
Mas o Brasil não tem uma lista de espécies aquáticas que deveriam estar sob proteção total?
Em 2014, depois de anos estudando quase quinhentas espécies aquáticas e os habitais que elas ocupam, os cientistas conseguiram emplacar a lista das espécies ameaçadas ou em alto risco de desaparecer. Mas o lobby da indústria pesqueira conseguiu derrubar a lista. Entre as espécies listadas está o budião azul, um peixe lindíssimo, que ocorre nas águas do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos (arquipélago que chamou a atenção de Charles Darwin, quando o visitou em 1832). Lá está o maior banco de algas calcárias do mundo e a maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul. E o budião é uma espécie chave naquele ecossistema. Ele é elo que mantém em equilíbrio a vida do lugar. Esta é apenas uma das espécies que ficaram desguarnecidas. Com muito esforço, os cientistas conseguiram manter alguns peixes em regulamentações específicas, como o mero e o cherne-poveiro, garantindo alguma salvaguarda.
E os tubarões e raias?
Os mais ameaçados da lista suspensa são as raias e tubarões. Foi por causa deles que a portaria caiu. O Brasil é um dos maiores consumidores dessas espécies em todo o mundo. O comércio de barbatana de tubarão azul movimenta milhões, e sua pesca está diretamente relacionada com outras raias e tubarões, também ameaçados. As listas servem de base para os planos de ação, que indicariam como melhorar a gestão dessas espécies. Por isto a lista é necessária. E urgente.
E o que pode ser feito para a cadeia produtiva da pesca marinha girar na direção oposta?
Olha, o desafio é enorme. Só os pescadores artesanais na costa brasileira somam cerca de um milhão de pessoas que dependem diretamente dos recursos do mar. Fora a indústria e toda a sua cadeia. Some-se o fato de que há pouco dinheiro para pesquisa, monitoramento e fiscalização quase zero e dezenas de espécies à beira da extinção, ou exploradas ao extremo. Mas há uma série de experiências positivas que já servem de farol e jogam uma luz sobre essa situação.
Quais, por exemplo?
Recentemente, as ONGs ambientalistas que trabalham com o tema marinho resolveram criar uma coalizão. Cada organização ficou com as áreas de atuação em que tem mais expertise para favorecer os esforços e usar melhor o pouco recurso de que dispomos. O WWF-Brasil, por exemplo, desenvolve algumas iniciativas, em diferentes elos da cadeia, como os Programas de Melhoria da Gestão Pesqueira. Ajudamos na análise dos estoques, no aprimoramento dos tipos de pescarias, estruturando meios de certificar alguns produtos. Um dos recortes que estamos atuando com intensidade é na relação de consumo dos pescados.
De que maneira?
Desenvolvemos junto com a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) uma campanha chamada Do Mar à Mesa, cujo objetivo é oferecer aos restaurantes e bares pescados frescos e ingredientes locais, advindos da pesca e cultivo sustentável. Testamos em Ubatuba, em outras cidades do litoral norte e na capital paulista. Foi um sucesso. Mostramos que há um mercado consumidor a fim de comprar um pescado que seja, de fato, sustentável, mesmo que tenha de pagar um pouco a mais por isso.
De que maneira a sociedade pode ser mobilizada para consumir o pescado de modo mais consciente?
Começamos com os chefs de cozinha, levando a eles a ideia de usar os pescados da temporada, que não estejam no período reprodutivo (defeso). Resgatamos receitas e modos de preparo tradicionais. Temos um padrinho, o chef Eudes de Assis, que é um caiçara e que abraçou nossa ideia e replica essas práticas no restaurante dele e nos cursos que ele promove.
E na ponta, junto aos que produzem?
Estamos trabalhando no norte do Pará, com os pescadores de camarão rosa, e em Santa Catarina. Iniciamos um trabalho de avaliação e mapeamos que um dos principais problemas da pescaria é a pesca incidental de espécies ameaçadas No litoral norte de São Paulo, incentivamos uma antiga arte de pesca, trazida pelos colonizadores japoneses, chamada de cercos flutuantes. É uma tecnologia que não degrada o ambiente marinho, pois ela permite que o pescador selecione os peixes de maior interesse e devolva ao mar o que não interessa para ele, ajudando a salvar espécies como a tartaruga, por exemplo. Estamos incentivando o uso dessa técnica junto aos pescadores caiçaras, também como forma de mostrar a importância da Área de Proteção Ambiental Marinha do Litoral norte para a produção pesqueira e geração de emprego e renda para as comunidades locais. Há outras organizações trabalhando com a pesca industrial. Outras atuam mais com políticas públicas. A ideia é atuar em conjunto. Não se faz nada sozinho.
E o mercado, como se comporta?
O Brasil é um dos países que mais importam pescados dos países vizinhos, sobretudo Chile, Argentina e Uruguai, grandes produtores que fazem da pesca parte importante de suas economias. Somos um dos cinco maiores importadores de pescados do Vietnã e da China. Ocorre de o pescado sair desses países com selo de certificação, e quando chega aqui, para evitar a despesa que implicaria em poder usar esse selo na embalagem, o atacadista tira o selo e põe tudo na mesma bacia, junto com o pescado de origem duvidosa. É insano. O consumo de pescado no Brasil cresceu muito nos últimos anos, na ordem de duzentos por cento. Mas a consciência não aumentou.
Quais as políticas públicas mais necessárias para o Brasil melhorar sua relação com o mar?
Fiscalização, transparência e rastreabilidade são os maiores desafios. Criar áreas protegidas, delimitar zonas de produção de pesca que permitam o reestabelecimento dos estoques pesqueiros, e claro, ter uma lista de espécies ameaças em vigor. Ter uma política consequente para os recursos aquáticos e marinhos implica na criação e incentivo aos comitês de gestão pesqueira, investir em ciência e, sobretudo, ouvir o que os cientistas têm alertado. Temos de monitorar nosso mar. Fazemos isso com a Amazônia, acompanhamos por satélite, em tempo real, o que acontece na floresta. E por que não fazer o mesmo com o mar?
(Colaborou: Mariana Corá, Analista de Conservação do Programa Marinho/WWF-Brasil)
Publicado originalmente no site do WWF Brasil.