Instituto Socioambiental –
A Licença de Operação de Belo Monte completa um ano e, para marcar a data, publicamos o seguinte balanço dos passivos, pendências e dívidas da usina junto ao Xingu e seus povos
Indígenas isolados ameaçados, sistema de saneamento básico em Altamira (PA) incompleto — jogando esgoto diretamente em rios e igarapés -, hospital fechado, ribeirinhos expulsos de suas casas — lutando para recuperar seus modos de vida -, Terras Indígenas desprotegidas e o rio Xingu definitivamente transformado.
Um ano após a emissão da Licença de Operação (LO) da hidrelétrica de Belo Monte e o barramento definitivo do Xingu, o legado da maior usina hidrelétrica construída na Amazônia está erguido sobre graves violações aos direitos humanos e ao meio ambiente. A usina encerra 2016 com três tentativas de suspensão da LO na Justiça, suspeita de superfaturamento de R$ 3,384 bilhões nas obras e inadimplente nas principais obrigações socioambientais.
As obrigações que foram repassadas de licença em licença, diante da incapacidade da empresa e do próprio governo em cumprir as condições de viabilidade e instalação da usina, são dívidas acumuladas do processo de licenciamento de Belo Monte e, com a aprovação da LO, ganharam o status de “adiadas indefinidamente”.
A Licença de Operação n° 1317/2015 atualizou parte das dívidas das licenças anteriores, impondo novos prazos para velhas obrigações, como aquelas referentes à finalização do saneamento básico da área urbana de Altamira, cidade mais impactada pela obra, o reassentamento urbano de bairros inteiros como o Pedral e a reurbanização do bairro Jardim Independente II e da orla de Altamira. Mesmo assim, nenhum dos prazos incluídos na LO para a entrega de obras atrasadas foi atendido.
Multas
Durante o primeiro semestre deste ano, Belo Monte recebeu multas administrativas que chegaram ao valor total de R$ 35,3 milhões. Foram as maiores infrações impostas pelo Ibama à empresa Norte Energia desde a emissão da primeira licença ambiental, em 2010.
A concessionária foi multada em R$ 27,3 milhões pela morte de 16,2 toneladas de peixes durante o processo de enchimento do reservatório principal, entre novembro de 2015 e fevereiro de 2016. A essa multa se somam outras duas punições publicadas entre janeiro e fevereiro, no valor de R$ 8 milhões, também por causa da morte massiva de peixes.
A Norte Energia estima que, desde o início da construção da usina até junho de 2016, mais de 22 toneladas de peixes morreram. Nos seis meses que sucederam o início do enchimento do reservatório do Xingu, aconteceram aproximadamente 74% do total das mortandades de peixes registradas na obra. (Saiba mais sobre os impactos de Belo Monte na pesca)
A Norte Energia, além de responsabilizada por crime ambiental, também foi multada em meio milhão de reais, em janeiro deste ano, por apresentar informações falsas em relatórios para o Ibama sobre a quantidade de trabalhadores contratada para realizar o resgate da fauna aquática. Essa equipe tinha como uma das principais funções fazer o salvamento dos peixes aprisionados em bolsões d’água após a redução da vazão.
Ao longo dos seis anos de licenciamento, a Norte Energia já recebeu Autos de Infração que culminaram com a aplicação de multas ambientais no montante de mais de 60 milhões de reais em decorrência de diversas infrações, crimes ambientais, reporte de informações falsas,entre outras irregularidades constatadas pelos analistas ambientais do Ibama que acompanham a obra.
LO na berlinda
Em apenas um ano de vigência, a LO já foi suspensa judicialmente duas vezes, em janeiro e agosto de 2016. Em ambas as oportunidades, o governo federal garantiu a continuidade da licença para operar a usina. Para isso, usou o mecanismo judicial da Suspensão de Segurança para cancelar os efeitos de decisões judiciais que, segundo a Advocacia Geral da União (AGU), “acarretam potencial lesão grave à ordem e à economia públicas”. A Suspensão de Segurança é um mecanismo acessível exclusivamente ao poder público, sendo um instrumento jurídico que permite que qualquer decisão judicial contrária a um ato governamental seja suspensa até o julgamento do último recurso do processo — o que pode levar anos.
Em janeiro de 2016, a Justiça Federal de Altamira determinou a suspensão da LO até o cumprimento da condicionante referente à reestruturação da Funai, imposta para garantir que o órgão teria condições necessárias de acompanhar a implementação das medidas e condicionantes relacionadas ao componente indígena de Belo Monte. A condicionante já constava na licença prévia da usina, de 2010, mas nunca foi cumprida e é obrigação conjunta da empresa e do governo federal.
Em vez de fortalecimento do órgão indigenista na região, o que ocorreu durante os últimos seis anos foi um verdadeiro sucateamento de sua estrutura e recursos para atuar e acompanhar os impactos da usina sobre os povos indígenas. A Funai continua sem sede própria. Em 2011, contava com 60 servidores em Altamira, hoje são apenas 20, uma redução de 66,7% no quadro de funcionários do órgão na região.
Nos últimos dias de novembro, o MPF ingressou com a mais recente Ação Civil Pública contra o empreendimento (a vigésima quarta ACP de Belo Monte) na Justiça Federal de Altamira. O procurador Higor Rezende entrou com a ação em defesa dos direitos das comunidades de pescadores cujos impactos pelas alterações na atividade da pesca não tem sido adequadamente reconhecidos, dimensionados e mitigados ao longo do processo de instalação e licenciamento da usina. (Processo nº 0003072–96.2016.4.01.3903). (Saiba mais)
Terras Indígenas sob ameaça
Em dezembro de 2015, duas semanas após sair a LO, o MPF ingressou na Justiça Federal de Altamira com uma ação civil pública alegando o etnocídio dos nove povos indígenas afetados por Belo Monte, em decorrência da destruição da organização social, costumes, línguas e tradições dos grupos indígenas impactados pela usina, bem como pela falta de proteção às terras indígenas.
A ação contém dezesseis pedidos de urgência mas, um ano depois, o judiciário ainda não apreciou nenhum deles e a Justiça Federal declinou a competência do processo para Belém, o que deve retardar bastante a apreciação das liminares (Processo nº 0003017–82.2015.4.01.3903). Os pedidos visam reverter o quadro de ameaças e vulnerabilidade dos indígenas, sendo um dos principais pedidos a intervenção judicial por meio de uma comissão externa interinstitucional sobre o Plano Básico Ambiental do Componente Indígena de Belo Monte (PBA-CI).
Originalmente concebido e aprovado como Programa Médio Xingu (PMX), o PBA-CI vem sendo implementado com diversas irregularidades, ilegalidades e imposições unilaterais pela empresa e se soma aos efeitos deletérios do até então implementado Plano Emergencial indígena, pelo qual a Norte Energia distribuiu, de forma clientelista, mesadas, bens de consumo e mercadorias às aldeias e que ajudou a desarticular, entre 2010 e 2012, as Terras Indígenas da região (saiba mais no Dossiê Belo Monte).
Uma das principais conclusões da ação do MPF:
“Resta amplamente demonstrado que a usina de Belo Monte põe em curso um processo de eliminação dos modos de vida dos grupos indígenas afetados, ao não impor barreiras às transformações previstas e acelerar ainda mais a sua velocidade com ações homogeneizantes e desestruturantes”.
Para além da inadimplência com relação à Funai, a autorização para operar a usina também saiu sem que medidas de proteção territorial indígena, de responsabilidade também do governo federal, fossem implementadas. Tanto ações de regularização fundiária quanto as de fiscalização das Terras Indígenas permanecem inadimplentes.
A emissão da Licença de Operação só foi possível porque a Norte Energia assinou um Termo de Cooperação com a Funai para a implementação imediata do Plano de Proteção Territorial das Terras Indígenasimpactadas por Belo Monte. Um ano depois, a Funai confirma que apesar de transcorrido 50% do tempo de vigência do Termo, apenas uma terceira parte dos compromissos assinados foram cumpridos, mediante a instalação do Centro de Monitoramento Remoto na sede da Funai de Brasília e de Altamira e a contratação de técnicos e agentes de monitoramento das Terras Indígenas.
O Plano de Proteção Territorial era ação antecipatória, deveria estar pronto antes do começo da instalação da usina e do pico do afluxo populacional para a região, previsto em 74 mil pessoas dispersas em toda a Área de Influência do empreendimento. Diante da não realização, chegou a ser judicializado pelo MPF (Processo nº 655–78.2013.4.01.3903). Cinco anos depois, das onze unidades de proteção territorial que deveriam ser entregues nas TIs, foram construídas seis bases operativas e dois postos de vigilância. Ainda faltam construir mais três, que nem começaram, sendo uma delas a Base Operacional Transiriri, na TI Cachoeira Seca, hoje a TI mais desmatada do Brasil e outra um posto de vigilância na TI Ituna/Itatá, que vem sofrendo aumento exponencial de desmatamento desde o início da construção da usina.
As bases operativas já construídas ainda não foram recebidas oficialmente pela Funai por diversos impedimentos administrativos e técnicos do órgão. Por este motivo, as equipes técnicas contratadas para trabalharem nas bases não foram alocadas nelas durante todo o ano de 2016.
Sem o trabalho de campo nas bases e postos de vigilância dialogando com o Centro de Monitoramento Remoto (CMR), boa parte das informações coletadas pelas equipes de geoprocessamento nos escritórios da Funai são subutilizadas. As informações do monitoramento remoto deixam de subsidiar ações de fiscalização em tempo hábil, como era seu objetivo original, e o Plano de Proteção Territorial perde efetividade.
Isolados em risco
O caso que melhor ilustra os efeitos práticos da ausência de implementação integral do Plano de Proteção Territorial corresponde precisamente à área de restrição de uso para proteção de índios isolados, a Terra Indígena Ituna/Itatá, localizada a menos de 70 km do sítio Pimental, principal canteiro de obras da usina.
Dados do monitoramento sobre desmatamento feito pelo Governo Federal mostram como a destruição da floresta da TI vem aumentado exponencialmente desde 2011, ano do início de construção de Belo Monte. Ao mesmo tempo, revelam a aceleração do processo de desmatamento precisamente durante o segundo semestre de 2014, período que coincide com o início da desativação dos canteiros da obra. Entre 2014 e 2016 o corte raso de floresta dentro da área “interditada para a proteção de povos em isolamento voluntário” dobrou. Veja gráfico ao lado.
A obrigação do governo federal de retirar os não-indígenas das TIs Apyterewa, Cachoeira Seca do Iriri e Arara da Volta Grande tampouco está finalizada. Também não foi adquirida área para permitir o acesso dos Juruna da TI Paquiçamba, na Volta Grande do Xingu, ao reservatório do Xingu (medida fundamental para que possam continuar pescando, atividade essencial para sua subsistência), e nem foi finalizado o reavivamento dos limites de todas as TIs impactadas por Belo Monte — reiterado nas condicionantes da Licença de Instalação (LI) da usina. A meta de finalizar os processos de demarcação física das TIs também não foi atingida.
Essas medidas se tornam mais urgentes agora, no momento de desativação dos canteiros de obras, fase do empreendimento em que se prevê os maiores impactos relativos ao aumento da pressão de ocupantes não indígenas sobre os recursos naturais e as próprias TIs no entorno da usina.
As Terras Indígenas afetadas por Belo Monte sofrem intensa pressão, que tende a se intensificar. TIs Apyterewa, Trincheira Bacajá, Cachoeira Seca e Ituna Itatá, por exemplo, vêm se tornando importantes focos de desmatamento ilegal e degradação florestal na região, cujo aumento exponencial coincide com as datas de início da construção da usina.
A dívida do reassentamento
Dentre o conjunto de descumprimentos, os mais graves, sem dúvida, têm a ver com a população que ainda luta pelo respeito do direito de ser reassentada próxima ao rio Xingu, em condições dignas e com possibilidades reais de reconstrução de suas vidas, redes sociais e atividades econômicas.
Para poder barrar o rio Xingu e encher o lago do reservatório principal da usina de Belo Monte, a Norte Energia removeu compulsoriamente mais de 5 mil famílias que residiam tanto na cidade de Altamira como nas ilhas e nas margens do rio Xingu. Muitas dessas famílias removidas compõem população tradicional ribeirinha, que guarda especial relação com o rio, do qual dependem para reproduzir seu modo de vida social, cultural e econômico.
As negociações realizadas com a empresa Norte Energia possibilitaram que as famílias tivessem apenas baixas indenizações monetárias, pois não foram consideradas como população tradicional com direito a reassentamento na beira do rio para manter o modo de vida. Muitas, assim, deixaram o rio para se mudarem para os loteamentos construídos pela empresa, ou lotes na Transamazônica longe do rio, longe de familiares, vizinhança e sem meios de subsistência.
Diante da constatação da ruptura do modo de vida ribeirinho do Xingu, pelo Ministério Publico Federal (MPF) junto a diversas instituições, está em curso, desde final de 2015, um processo inédito na construção de hidrelétricas na Amazônia — o retorno dos ribeirinhos para beira do rio, por meio de um reassentamento dentro da área do reservatório principal da usina. O processo em curso tem como meta a reparação integral do dano que as famílias viveram ao serem expulsas do rio, nas dimensões sociais, econômicas, culturais e afetivas.
Mais de cem famílias já retornaram para beira do rio nesse um ano depois do barramento, mas o processo precisa de muitos ajustes, seja por áreas mais adequadas ao uso dos ribeirinhos, seja pelo apoio necessário até que sejam incluídas famílias que ficaram de fora do processo por erros antigos de cadastramento e injustiças cometidas pela empresa.
Para fortalecer o movimento de retorno ao Xingu foi formado um Conselho Ribeirinho logo após audiência pública de 11 de novembro de 2016, que é agora a instância soberana para conduzir o processo de reconhecimento das famílias e dos critérios e áreas para o reassentamento.
Em paralelo a esse processo, um outro reassentamento específico precisa ser construído na beira do rio Xingu — o Reassentamento Urbano Coletivo (RUC) do Pedral. Essa é uma demanda das populações tradicionais — indígenas citadinos, ribeirinhos e pescadores — que vem sendo pleiteada desde 2013 junto à empresa e ao Ibama. Essas famílias foram removidas de suas casas na cidade de Altamira, nos locais que foram esvaziados para o enchimento do lago. Mas, diante da realidade dos outros RUCs, que são longe do rio, essas populações lutaram pela construção de um sexto RUC dentro do licenciamento de Belo Monte — e conseguiram.
Um processo de idas e vindas foi instaurado, com uma instância de participação chamada Grupo de Acompanhamento do Pedral para garantir que esse bairro seja diferenciado e possa recompor o modo de vida — ele deverá conter áreas comuns, mercado de peixe, atracadouro de barcos, centro cultural e um Centro de Tecnologias de processamento de produtos da floresta.
Mesmo com a pendência de se construir um reassentamento inteiro, o RUC Pedral, a Licença de Operação foi concedida, impondo o prazo para sua finalização de um ano. O bairro deveria estar pronto este mês, novembro de 2016. E a realidade é que ainda não há nada na região do Pedral além da terra nua após a supressão da vegetação. O novo prazo solicitado ao Ibama é março de 2017, para que a empresa entregue esse bairro pronto e as famílias possam, finalmente, voltar para a beira do rio.
Esgoto corre solto
Em agosto deste ano, a Justiça Federal de Altamira concedeu nova liminar para suspender a Licença de Operação de Belo Monte, desta vez pelo descumprimento de condicionante relativa à obrigatoriedade da implantação do sistema de saneamento básico da cidade de Altamira, cujo pleno funcionamento estava previsto para julho de 2014, ainda na Licença de Instalação da usina.
O funcionamento do sistema está diretamente relacionado com a manutenção da qualidade da água do atual reservatório, na frente da cidade de Altamira, para evitar que o esgoto urbano continue a ser lançado sem tratamento no rio Xingu, agora represado, e nos lençóis freáticos da cidade (Saiba mais: Processo n° 269–43.2016.4.01.01.3903).
Duas semanas depois de cancelada a LO, o governo federal conseguiu suspender os efeitos da decisão em segunda instância (Tribunal Regional Federal — TRF1), como de praxe, por meio do uso do mecanismo de Suspensão de Segurança. Não obstante, desta vez, o Presidente do Tribunal, Hilton Queiroz, constrangido pela robustez das provas e a incapacidade do poder judicial para cobrar o cumprimento das obrigações estabelecidas na licenças ambientais, decidiu manter as multas aplicadas à concessionária pelo atraso na entrega do saneamento.
Assim, em decisão de setembro de 2016, a Norte Energia foi obrigada a pagar R$ 60 mil pelo descumprimento da conclusão dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário até o dia 30 de outubro de 2016, e a partir desta data, ficou estabelecida multa de R$ 40 mil por dia até a operação dos sistemas de saneamento básico em todo o perímetro urbano de Altamira. Segundo MPF, a empresa não cumpriu a decisão.
Em setembro de 2016, prazo previsto para a entrega das ligações intradomiciliares de saneamento de todos os bairros, a Norte Energia havia construído apenas 31 ligações à rede de esgoto.
Em novembro de 2016, dois meses depois de vencido o prazo previsto na LO, a Norte Energia concluiu apenas 458 ligações domiciliares às redes de esgoto e 485 ligações de água. No total, serão necessárias 16.093 ligações domiciliares de esgoto e 11.888 conexões de água para ligar todos os bairros da cidade às estações de tratamento de água (ETA) e esgoto (ETE). A prefeitura ainda não foi informada oficialmente sobre o número atual de ligações concluídas.
Ou seja, foram construídas apenas 2,85% das ligações de esgoto e 4,1% de água um ano após o barramento definitivo do rio — sendo que essa era uma das principais condicionantes de viabilidade ambiental da obra.
Em setembro, na previsão da entrega, a Norte Energia solicitou ao Ibama a prorrogação de prazo para dezembro de 2016. Esse prazo também não será cumprido e o atraso gritante deve se arrastar por muito tempo. A Coordenadoria de Saneamento de Altamira (Cosalt) acredita que, diante do número de ligações feitas até agora e da velocidade de realização, dificilmente a entrega do sistema operante acontecerá em menos de um ano.
Para além do prazo em si, é o preço da inadimplência do saneamento que mais preocupa: “A não realização das ligações domiciliares no prazo previsto, e com o rio barrado definitivamente, pode configurar um problema sério de saúde pública. Não há estudos que comprovem se haverá ou não impacto dos resíduos das fossas rudimentares nas águas usadas pela população para abastecimento e consumo no rio Xingu”, alerta Fernando Augusto Ramos, coordenador da Cosalt.
Além disso, todo o processo de implementação do sistema de saneamento básico da cidade de Altamira tem sido pouco transparente e participativo. A Norte Energia solicita que as famílias assinem um Termo de Autorização de Serviços (TAS) para fazer a ligação dentro de suas casas. Porém, ao assinar, o proprietário concorda que depois da construção da ligação domiciliar dentro de sua casa, o reparo e reforma decorrentes da construção não se darão, necessariamente, nos mesmos materiais que antes existiam. Independente dos acabamentos, todas as famílias recebem como opção o mesmo rol restrito de materiais que a empresa escolheu, unilateralmente, para compor o “kit padrão” de reparação das casas.
Esse tipo de imposição da empresa, aliada à falta de informação clara sobre a necessidade de se ligar à rede de saneamento e à ausência de implementação de um plano de comunicação massivo à população, elaborado pela Norte Energia em parceria com a prefeitura, compõem motivos que levam muitas famílias a se recusarem a aceitar as obras de ligações domiciliares de água e esgoto em suas casas.
À Norte Energia também foi incumbido o papel de elaborar um plano municipal de saneamento, com a participação dos órgãos competentes e a população em geral. Não obstante, a concessionária apenas entregou um diagnóstico geral, que já está desatualizado, e não há avanços na definição de questões fundamentais, tais como cobrança de tarifas, manutenção do sistema, caracterização da população atendida, medidas para expandir a rede e atingir 100% de cobertura, entre outras. Sem a elaboração e aprovação do plano municipal de saneamento dificilmente os desafios da gestão do sistema de saneamento serão superados.
Falta água na beira do Xingu
O abastecimento de água para a população da cidade de Altamira, parte integrante do sistema de saneamento básico e obrigação de condicionante da instalação da usina, também enfrenta problemas graves, já que foi subdimensionado no seu planejamento de construção de captação e expansão da rede, obrigações da Norte Energia.
O sistema de distribuição de água, com oito reservatórios e rede de abastecimento construídos pela empresa, somados à rede anterior que o município já possuía antes da usina, são, hoje, totalmente insuficientes para abastecer toda a cidade com água potável. Os novos loteamentos construídos pelo empreendedor, os chamados Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs) sofrem com falta d’água sempre que há problemas na rede de abastecimento. A empresa teve que perfurar poços que operam em paralelo à rede e que também vem se mostrando insuficientes para atender à demanda.
Para a Prefeitura de Altamira, a solução oferecida pela Norte Energia para mitigar as consequências de sua inadimplência é improvisada, cara e insustentável. Diariamente a empresa disponibiliza seis caminhões pipaque coletam água da estação de tratamento da prefeitura e levam até os RUCs. A prefeitura também precisa complementar o abastecimento de bairros da cidade com carros pipa próprios e a Cosalt disponibiliza três deles diariamente, com 10 mil litros cada. Não há nenhuma previsão de até quando os carros pipa precisarão ser usados e nem qual a solução definitiva para garantir a ampliação do sistema.
Hospital fechado
Quanto à saúde, o Hospital do Mutirão, em Altamira, ainda não está em operação. Ele devia ter sido entregue pela Norte Energia, em 2013, para incrementar o sistema de saúde público que ficaria sobrecarregado com o afluxo populacional durante o pico da construção da obra. A estrutura física do hospital ficou pronta no primeiro semestre de 2015, mas faltavam ajustes e instalação de equipamentos que só vieram a ser realizados em 2016. Além da questão estrutural, responsabilidade da empresa, os impasses quanto à gestão e custeio também impediram a inauguração. Ou seja, o hospital está construído, mas fechado há mais de um ano e meio.
Esse problema se estende a toda a rede. Diversos equipamentos de saúde como leitos hospitalares, unidades e postos de saúde (UBSs) foram construídos pela Norte Energia como parte das condicionantes do licenciamento, mas as indefinições sobre o custeio e gestão do sistema de saúde da região ainda impedem seu pleno funcionamento. Por exemplo, novos leitos de UTI são necessários no hospital do Mutirão, mas ainda não tem responsável certo para seu custeio e manutenção entre as três esferas de governo que poderiam assumí-los.
Veja uma análise completa sobre os problemas de distribuição de responsabilidades para efetividade de condicionantes da saúde na publicação da FGV “Indicadores Belo Monte”.
Para inglês ver
Nenhum dos prazos incluídos na Licença de Operação para a entrega de obras atrasadas, que já estavam previstas na Licença de Instalação e até mesmo na Licença Prévia da Usina, foram atendidos.
A principais obrigações repactuadas na LO tiveram ainda revisões de prazos entre a Norte Energia e o Ibama durante este último ano. Ainda assim continuam inadimplentes.
O quadro abaixo mostra o estado atual de descumprimentos das mais importantes obras que deveriam estar finalizadas antes de autorizar a operação da usina. Obrigações como o funcionamento do saneamento básico de Altamira ainda fazem parte do conjunto de obras classificadas como “antecipatórias do empreendimento” e que nunca aconteceram.
As principais consequências dos descumprimentos dos prazos das ações de requalificação urbana da cidade e das ligações do saneamento, aliadas à falta de drenagem em vários pontos da cidade são: risco de contaminação das águas que escoam ao rio Xingu e a piora da qualidade da água dos igarapés que acumulam esgoto e processos de assoreamento.
Diante desse quadro de descumprimentos reiterados de prazos, os analistas do Ibama (COHID — Coordenação de Energia Hidrelétrica), no parecer de análise das condicionantes da LO, de outubro de 2016, recomendam que a Norte Energia seja penalizada administrativamente pelo descumprimento de condicionantes vencidas.
Até a data de publicação deste texto, entretanto, ainda não foram publicados, por parte da Diretoria de Licenciamento Ambiental (DILIC) do Ibama, os encaminhamentos definitivos quanto às sanções administrativas e penalidades que deverão ser impostas à concessionária.
Compensando fora
Neste primeiro ano da Licença de Operação de Belo Monte, a Justiça Federal de Altamira também questionou a destinação dos recursos de Compensação Ambiental da usina. Depois de calculados pelo Ibama e devidamente corrigidos em pouco mais de R$ 135 milhões, a Câmara de Compensação Ambiental Federal (CCAF) decidiu destinar o montante para investimentos em Unidades de Conservação fora das áreas de influência de Belo Monte, e até mesmo fora da bacia do Xingu. Calcula-se queapenas 28% destes recursos foram investidos nas unidades de conservação que sofrem impactos da usina.
Em abril de 2016, a Justiça Federal de Altamira determinou a suspensão da execução dos recursos da Compensação Ambiental de Belo Monte e solicitou a reavaliação de sua destinação. Passados sete meses, a Câmara de Compensação Ambiental Federal, presidida pelo Ibama, sequer incluiu na agenda a pauta de revisão da destinação dos recursos de Compensação de Belo Monte (Processo n°0000466–95.2016.4.01.3903). (Saiba mais)
Fonte: Instituto Socioambiental (ISA) – https://goo.gl/oX8u0W