Stuart Braun, da Deutsche Welle –
O mundo esgotou nesta quarta-feira (02/08) seus limites biológicos para o ano 2023: a humanidade precisaria de cerca de 1,7 planeta para manter o atual estilo de vida. A conclusão é da ONG ambientalista Global Footprint Network, sediada nos Estados Unidos.
A curva da sobrecarga ecológica se aplainou nos últimos cinco anos, mas é difícil distinguir se a tendência é “gerada por uma desaceleração econômica ou por esforços de descarbonização intencionais”. O Dia da Sobrecarga da Terra chega cinco dias mais tarde do que em 2022, mas isso se deve, em grande parte, ao modo como a rede ambientalista coleta dados.
Seja como for, está lenta demais a imposição de limites à exploração exagerada dos recursos naturais. Segundo os cálculos da ONG, o Dia da Sobrecarga teria que ser 19 dias mais tarde a cada ano nos próximos sete anos para que se alcancem as metas climáticas globais de corte das emissões carbônicas causadoras do efeito estufa.
Em comunicado, o diretor-presidente da Global Footprint, Steven Tebbe, associou o esgotamento dos recursos do planeta – do dematamento à queima de combustíveis fósseis – aos eventos climáticos extremos: “A sobrecarga constante provoca sintomas cada vez mais evidentes, incluindo ondas de calor atípicas, incêndios florestais, secas e inundações, com o risco de comprometer a produção de alimentos.”
Em 1970, quando a ONG começou a divulgar sua estimativa anual, a biocapacidade da Terra – definida como a “capacidade dos ecossistemas de produzirem materiais biológicos usados pelos humanos e absorverem os resíduos gerados por eles” – era mais do que suficiente para atender à demanda anual. Contudo, no meio século desde então, a humanidade regularmente retirou recursos demais de seu único planeta.
Desigualdade no uso dos recursos
A Global Footprint Network também calcula os dias da sobrecarga das diferentes nações. O do Brasil será em 12 de agosto, mas na Alemanha ele chegou em 4 de maio: se todos vivessem como a população do país europeu, seriam necessários três planetas para sustentar a humanidade durante um ano.
Os Estados Unidos e os Emirados Árabes Unidos – onde a Conferência do Clima das Nações Unidas se realiza em 2023 – alcançaram a sobrecarga ecológica em 13 de março. Assim como em 2022, o Catar se destaca como infrator-mor, já tendo esgotado em 10 de fevereiro seus recursos renováveis.
O Sul Global arcará com grande parte do custo da destruição ambiental causada pelo esgotamento de recursos. Do mesmo modo, são as gerações futuras que vão sofrer as consequências da crise climática que está sendo agravada agora pelo consumo excessivo.
A Indonésia ou o Equador, por exemplo, não atingirão a sobrecarga até dezembro – portanto vivem relativamente de acordo com seus próprios meios. No entanto esses países e outros são alvo de exploração de recursos por nações mais ricas como a Alemanha.
“A Alemanha é a quinta maior consumidora de matérias-primas do mundo, importando de países do Sul Global até 99% de seus minerais e metais”, frisava em 2022 Lara Louisa Siever, consultora chefe de políticas para justiça de recursos da rede alemã pelo desenvolvimento Inkota.
O mito da Alemanha “campeã ecológica”
Outros países industrializados acompanham a Alemanha no alto da lista dos superconsumidores. A França esgotou seus recursos renováveis um dia depois dela, em 5 de maio; Grécia, Reino Unido e Japão vêm logo atrás, tendo superado suas capacidades no mesmo mês.
“O grande problema que temos na Alemanha, no Norte Global em geral, é ainda não termos entendido que os recursos são finitos”, especifica Viola Wohlgemuth, responsável pelas campanhas pró-economia circular e antissubstâncias tóxicas do Greenpeace Deutschland.
Ela se baseia em dados do World Resources Institute (WRI) segundo os quais 90% da perda de biodiversidade se deve à “exploração de recursos e sua conversão em produtos”, atividades que também respondem por 50% das emissões globais de gases do efeito estufa, danosos ao clima.
Apesar desta “enorme crise de recursos”, nações como a Alemanha “não aprenderam”, lamenta Wohlgemuth. E o ativista climático Tadzio Müller, de Berlim, lembra que ela já foi considerada “modelo de virtude climática”.
“A origem desse mito da Alemanha como campeã ecológica, ironicamente, não tem nada a ver com a política industrial alemã, nem com suas estratégias em nível governamental, mas sim com os poderosos movimentos sociais do país.”
Como exemplos, ele cita o movimento antinuclear alemão, nascido nas décadas de 1970 e 1980, que por muito tempo pressionou pelo abandono gradual da energia nuclear; o investimento na energia renovável por empresas locais de pequeno e médio porte; e, mais recentemente, as demandas de jovens ativistas do clima pelo fim do uso de combustíveis fósseis.
Economia circular x crescimento infinito
Mas para enfrentar as mudanças climáticas e o “problema extremamente grave da perda de biodiversidade” gerado pelo consumo excessivo, enfatiza Müller, será preciso um questionamento fundamental do princípio do crescimento infinito que move a política econômica alemã.
Isso se estende à noção de “crescimento verde” – ou o que ele denomina “capitalismo do carro elétrico” –, também baseado na expansão maciça do consumo de recursos naturais, em especial minerais e terras raras.
Economia circular permite agricultura no deserto
O governo federal alemão está debatendo uma nova estratégia nacional de economia circular, num esforço para implementar eficiências que reduzam o consumo de recursos – embora mantendo o mesmo modelo de crescimento, critica Müller.
Para Viola Wohlgemuth, uma economia circular holística é vital para que o Dia da Sobrecarga da Terra não chegue tão cedo: “Devemos modificar nossos modelos de negócios para que os produtos sejam verdadeiramente recicláveis.”
Além de evocar os princípios de reduzir, reutilizar e reciclar, no cerne do Plano de Ação para Economia Circular do Acordo Verde Europeu, a ativista do Greenpeace urge por um teto absoluto para o uso de recursos na Alemanha.
Tais limites precisam abranger a utilização de energia: apenas um quarto do gás alemão é usado na calefação ou para cozinhar, lembra Wohlgemuth, enquanto a maior parte do combustível fóssil, com seus altos teores carbônicos, alimenta uma produção industrial não sustentável.
Do clima à escassez de alimentos: sintomas do mesmo mal
“As emissões de gases do efeito estufa são uma consequência direta da superprodução e do consumo, e precisam ser cortadas três vezes mais rápido do que agora, se a Alemanha quiser reduzir sua sobrecarga”, frisa Christoph Bals, diretor político da organização ambientalista Germanwatch.
Para tal seria necessário melhorar o acesso ao transporte ferroviário de alta velocidade e baixas emissões, e reduzir as viagens aéreas. “Mas antes de tudo é preciso lidar com o consumo excessivo. Caso contrário a Alemanha não conseguirá viver no limite de seus meios”, ressalta Bals.
“A gente encara todos os problemas separadamente: mudança climática ou perda de biodiversidade ou escassez de alimentos – como se ocorressem independentes uns dos outros”, comenta o fundador e presidente da Global Footprint Network, Mathis Wackernagel.
“Mas todos são sintomas do mesmo tema subjacente: que o nosso metabolismo coletivo, o volume de coisas que a humanidade usa, tornou-se demasiado em relação ao que a Terra é capaz de renovar.”