O femicídio emerge de uma base social em que diversas formas de abuso da integridade da mulher são naturalizadas no cotidiano
Por Rosana Pinheiro-Machado —
Quando se fala em violência contra a mulher, a primeira coisa que pode vir à mente é a agressão física*. Isso ocorre por razões óbvias: ela deixa marcas visíveis, dói na pele e na alma, humilha e mata. No entanto, neste 8 de Março, gostaria de chamar atenção para o fato de que o femicídio emerge de uma base social mais profunda, em que diversas formas de abuso da integridade da mulher são naturalizadas no cotidiano.
Os dados de violência contra a mulher no Brasil são alarmantes. Somos o quinto país em violência contra a mulher. A cada cinco minutos, uma mulher é agredida – isso contando apenas os casos que foram denunciados, já que muitas mulheres se escondem de vergonha, dor e medo do agressor (que em 70% dos casos é o próprio parceiro).
São cinco mil mulheres mortas por ano, treze por dia. A violência contra a mulher não pode ser tratada como uma questão exclusivamente de gênero, já que ela está diretamente relacionada com a violência estrutural, com a desigualdade social, regional e racial. As maiores das vítimas desse femicídio são justamente as mulheres mais pobres, negras e do Norte e Nordeste do país.
A agressão física e o femicídio não nascem do vácuo, mas possuem raízes em representações sobre a mulher enraizadas em nossa cultura. Eles são apenas o estopim de uma sociedade marcada pela presença de diversas formas de violência contra a mulher que são menos visíveis e, portanto, nem sempre tratadas como violência.
Violência é toda forma de violação da dignidade que causa dor física ou emocional. Muito se fala em agressão doméstica, mas é assustador o silêncio e a ignorância que existem em torno do assunto de relacionamento abusivo, por exemplo. Ciúmes não é amor. Controle não é amor.
Levantar a voz e jogar um objeto na parede não são atos inofensivos para extravasar a raiva, mas um alerta vermelho. Fuja. Humilhação da mulher na frente dos outros? Fuja.
A dominação psicológica é considerada em muitos países como uma violência tão grave como a física, pois ela destrói a autoestima, anula a personalidade e tudo é vivido por meio de um processo invisível e solitário.
Uma propaganda de cerveja, que estampa diariamente a bunda da mulher, agride e assalta a personalidade de muitas mulheres. Cantadas também agridem. Temos o direito de caminhar na rua com a roupa que quisermos sem sermos molestadas. É lamentável ainda ouvir que uma mulher deveria ficar feliz por ser assediada nas ruas e por levar cantada.
No ambiente de trabalho, funcionárias têm que não apenas ouvir “galanteios” de seus chefes e ficar quietas, mas também agradecer o “elogio”. O mesmo acontece com alunas em relação aos seus professores.
Existem muitas pessoas que defendem as cantadas – seja do ambiente do trabalho, acadêmico ou mesmo o fiu-fiu da rua – como forma de praticarmos nossa brasilidade, ou seja, de exercermos a sexualidade em comparação a tantos países onde as pessoas são reprimidas.
Eu tenderia a concordar se as cantadas fossem multidirecionais e se o resultado dessa prática unilateral não culminasse em um sistema social que acaba em espancamento, estupro e mutilação de mulheres.
Também ainda existem pessoas que, quando ouvem falar de estupro, pensam naquele cara que pega uma mulher de roupa curta e justa numa praça escura. Embora isso seja um cenário possível, o estupro é muito mais ordinário do que se imagina e é praticado por vizinhos, parentes, colegas e parceiros.
Existem muitas mulheres que sequer têm noção que já passaram por situações de estupro. Situações em que não consentiram enquanto estavam embriagadas, por exemplo.
Também existe a violência que a mulher se submete por medo, vergonha ou culpa. Lá no íntimo a mulher sabe que tinha algo errado naquele sexo que ela não queria fazer, mas se sentiu culpada (de não ser a mulher maravilha na cama) de pedir para parar no meio do ato – mesmo que fosse para o namorado.
Muitas mulheres não sentem prazer e muitas sentem dor durante o sexo. Parceiros abusivos, de um lado; falta de informação, vergonha e sentimento arcaico de obrigação sexual, de outro, fazem com que mulheres se coloquem nessa situação degradante.
Quando se fala de estupro é preciso discutir consentimento. Mas as coisas não são tão simples assim. Também é preciso discutir o que é consentimento para meninas muito jovens que foram educadas em uma sociedade autoritária de valores masculinos.
Nós só podemos falar de consentimento, portanto, quando estamos falando de mulheres adultas que já possuem consciência não apenas de seu corpo, seus pontos de dor e prazer, mas também das relações de poder que estruturam o nosso cotidiano. Mas infelizmente estamos muito longe disso, já que o sexismo não é discutido obrigatoriamente nas escolas.
É risível, portanto, falar em consentimento quando nos referimos a uma aluna jovem que manteve relações sexuais com um professor, ou funcionária com seu chefe, por exemplo. É muito como a coação direta ou indireta no mundo acadêmico ou empresarial.
Afinal, o poder é a coisa mais fascinante e desastrosa que o ser humano inventou. Como sabemos, tanto o ambiente acadêmico como empresarial estão repletos de homens que usam o poder e o conhecimento como uma arma de caça e coação.
Nós, mulheres, precisamos falar de violência de forma plural porque a cantada na rua e a bunda da propaganda de cerveja são apenas a base de um sistema cultural que poderá culminar em morte.
Ninguém fará nada por nós mesmos em um sistema de poder que é predominante dominado por homens. É preciso ter mais mulheres no poder, mulheres feministas. Da mesma forma, é preciso empoderar mulheres para que respondam a cantadas sem medo, que boicotem produtos que objetificam seus corpos, que denunciem seus chefes e professores e, finalmente, que fujam de relações abusivas.
É preciso ensinar sexismo – e seu antídoto, a igualdade de gênero – nas escolas para que as meninas, já desde cedo, saibam se defender em uma sociedade de predadores. É preciso rever nossos ensinamentos para nossos alunos e alunas, sobrinhos e sobrinhas, filhos e filhas.
Infelizmente, a normalidade de ensino doméstico de gênero ainda é dizer para os meninos que eles devem ser gentis, ao estilo “abrir a porta do carro para as mulheres”. Gentileza é a base de tudo, mas dispensamos aquela gentileza que trata a mulher como uma flor frágil. Queremos a gentileza do respeito e da escuta.
Para as meninas, ensina-se a se vestirem decentemente e a se comportar “com modos”. Como agir com modos é uma coisa intangível, porque isso simplesmente não existe, temos uma sociedade em que meninas nunca se comportam e, de forma culturalmente legitimada, pagam um preço alto por isso: com sua pele, sua dor, sua carne, seu útero e sua vida.
Oito de Março é dia de luta. (Carta Capital/ #Envolverde)
*Este texto é parte da cartilha do PSOL “A Luta das Mulheres Muda o Mundo”, a ser lançada ainda em Março. Agradeço à Luciana Genro pela oportunidade de escrever sobre o tema.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.