Por Gustavo Capdevila, da IPS –
Genebra, Suíça, 7/2/2017 – O primeiro especialista independente da Organização das Nações Unidas (ONU) para Orientação Sexual e Identidade de Gênero, o advogado tailandês Vitit Muntarbhorn, já começou o processo de consultas abertas e transparentes com indivíduos, organizações sociais e Estados, embora alguns desses ainda objetem seu mandato. O professor de direito internacional na Universidade Chulalongkorn, em Bangcoc, tem por missão colaborar com a proteção dos direitos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI), vítimas de violência, ódio e discriminação em numerosos países.
Formado na inglesa Universidade de Oxford, e desde 1990 colaborador de diferentes agências da ONU, o jurista se integra ao sistema de procedimentos especiais do Conselho de Direitos Humanos, que tutela as garantias civis, culturais, econômicas, políticas e sociais, formado por 57 especialistas, 43 temáticos e 17 com mandatos por país.
Muntarbhorn começou seu trabalho no final de janeiro, depois que, em uma acirrada votação, o Conselho aprovou, em junho de 2016, a criação do mandato que agências da ONU e organizações sociais pediam há décadas. Dos 47 Estados que integram o órgão, 21 votaram a favor, 18 contra e seis se abstiveram. O texto aprovado sofreu emendas de última hora que “suavizaram” seu conteúdo, impulsionadas por “países retrógrados, como a Rússia e membros da Organização para a Cooperação Islâmica, como Paquistão, Egito e Arábia Saudita”, recordou Pooja Patel, investigadora do Serviço Internacional de Direitos Humanos, com sede em Genebra.
O mandato do especialista independente superou, no final de 2016, em votações também acirradas, outros obstáculos impostos por países africanos junto ao Terceiro Comitê da Assembleia Geral da ONU, que cuida de temas sociais, humanitários e culturais. Por outro lado, recebeu em Genebra, sede do Conselho de Direitos Humanos, um sólido apoio de organizações sociais e de Estados, principalmente da América Latina e Europa Ocidental, além de Estados Unidos, Canadá, Japão, Austrália e Nova Zelândia.
O representante da União Europeia, Jérôme Bellion-Jourdan, ressaltou a atitude dos sete países latino-americanos (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, México e Uruguai), que apresentaram e defenderam durante ásperos debates a resolução original da criação do mandato. Após essas discussões no Conselho e na Assembleia Geral, “os números e o apoio a esse mandato só cresceu em todo o mundo”, pontuou André du Plessis, um dos diretores da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (Ilga).
Muntarbhorn reconheceu que é importante o desenho entre países, embora tenha adiantado que pretende manter consultas com todos. “Trataremos de fortalecer, reforçar e aplicar de modo efetivo os padrões que já existem na matéria”, afirmou com exclusividade à IPS. O especialista afirmou que o termo “orientação sexual” descreve “como nos sentimos em relação a outros e é uma dimensão externa do que somos”. Já a “identidade de gênero” é “a dimensão interna do que somos, que pode ser diferente, em termos de identidade, do gênero ou sexo de nascimento, e isso tem muito a ver com as pessoas transgênero.
Toda as pessoas têm orientação sexual e identidade de gênero (OSIG), porém, “o mais triste é que aquelas com OSIG diferentes são perseguidas por serem distintas da rigidamente considerada norma binária heterossexual de homem/mulher”, apontou Muntarbhorn. “E isso é um convite para uma compreensão mais ampla da biodiversidade humana, que deve vir desde a mais jovem idade e que será uma maneira de prevenir mal-entendidos e equívocos que em última instância podem levar à violência e à discriminação” acrescentou o especialista.
O programa imediato de Muntarbhorn inclui uma apresentação no Conselho de Direitos Humanos, durante sua próxima sessão, que começará no dia 27 e irá até 24 de março, e também sua primeira visita de avaliação a um país, neste caso a Argentina, entre 1º e 10 de março. Em seu plano de trabalho, o advogado dará ênfase a cinco áreas interligadas, consideradas decisivas na proteção contra violência e discriminação, que são: despenalização, desestigmatização, reconhecimento legal da identidade de gênero, inclusão social com diversidade sexual e de gênero, e empatia.
Sobre a despenalização, o especialista explicou que pertencer ao coletivo LGBTI ainda é punido em 70 países, e que entre cinco e sete deles incluem a aplicação da pena de morte. “Essa é uma preocupação de enorme importância e necessitamos de um diálogo satisfatório com esses países”, ressaltou Muntarbhorn. Um informe da Ilga, de 2015, diz que a pena de morte por atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo era aplicada em 13 países, ou em parte de seus territórios, o que equivalia a 6% do total de membros da ONU.
A pena de morte para esses atos, conforme condutas codificadas na sharia, a lei islâmica, vigorava em quatro países: Sudão, Irã, Arábia Saudita e Iêmen. As mesmas condenações eram aplicadas em áreas de dois países: em 12 Estados do norte da Nigéria e em regiões meridionais da Somália. A pena capital pelos mesmos motivos codificados na sharia vigora igualmente em Mauritânia, Afeganistão, Paquistão, Catar e Emirados Árabes Unidos, embora se desconheça se é aplicada de maneira específica a casos de relações entre pessoas do mesmo sexo.
A última modalidade de aplicação da pena de morte por esses motivos é colocada em prática por tribunais regionais, vigilantes e atores não estatais, no Iraque e em áreas da Síria controladas pelo grupo Estado Islâmico. Muntarbhorn citou casos de países onde existem leis que castigam as relações entre pessoas do mesmo sexo, particularmente os gays. Mas esses mesmos Estados se mostram muito abertos às pessoas transgênero.
“Essa é a realidade em nível local e, portanto, é muito importante não generalizar muito, sendo melhor observar o específico e procurar com que, por meio da totalidade de garantias dos direitos humanos, sejam cumpridas as normas internacionais”, acrescentou o especialista. Desde 1980, cerca de 15 países despenalizaram essas condutas, “o que demonstra que as mudanças podem ser obtidas mediante a promoção de modificações construtivas. E, há dez anos, ou mesmo há dois, eu não teria pensado que um especialista independente das OSIG estaria presente aqui hoje”, pontuou.
Quanto à desestigmatização, Muntarbhorn recordou que, até 1990, os gays eram considerados doentes mentais, “quando, na realidade, são apenas parte da biodiversidade humana”. Naquele ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) eliminou a homossexualidade de sua lista de doenças mentais. Entretanto, “ainda temos essa classificação particular para as pessoas transgênero e as intersexuais. Devemos avançar em relação à identidade das pessoas, sem estigmatizá-las, sem transformar o tema em uma questão médica ou patológica”, destacou.
O reconhecimento legal da identidade de gênero se refere aos problemas que as pessoas transgênero e intersexuais enfrentam. No caso das transgênero, elas desejam que sua identidade seja legalmente reconhecida, mesmo quando seja diferente da identidade de gênero que tiveram ao nascer. “A questão se relaciona em grande parte com a cirurgia compulsiva que lhes é imposta em alguns países, quando desejam mudar sua identidade de gênero, embora em outros países nem mesmo exista tal possibilidade”, explicou o especialista.
Muntarbhorn acrescentou que “as pessoas trans são classificadas como homens quando se sentem mulheres e se vestem como mulheres, e enfrentam muitos problemas, como o bullying escolar, criação de estereótipos, uso dos banheiros e, em síntese, a tortura”.
Sobre a inclusão cultural com diversidade de gênero, o especialista encontra algumas práticas tradicionais positivas, como o caso de certas comunidades que historicamente protegiam e valorizavam as pessoas transgênero “quase como deuses e deusas”. Mas, recordou, “também surgem casos de práticas tradicionais negativas, que matam, prejudicam e perseguem as pessoas que são diferentes em termos de orientação sexual e identidade de gênero”.
Muntarbhorn constatou que isso ocorre em muitas comunidades, como consequência da aplicação de certas interpretações de leis religiosas e como remanescências de leis coloniais que penalizavam as relações entre pessoas do mesmo sexo. A empatia que o especialista propõe com os LGBTI significa “compreensão, atitude, conhecimento, disposição e, mais ainda, educação. Representa socialização, vínculos com famílias e comunidades desde pouca idade e, dessa maneira, sentimos empatia, certo entendimento sobre aqueles que são diferentes de nós em termos de gênero e diversidade sexual”. Envolverde/IPS