Por Pedro Guedes, Augusto Colório e Bruno lima Rocha*, do Jornal GGN –
Nos últimos três anos, a Guerra Civil síria, que até o momento caracterizava-se por um conflito regionalmente contido, no que se refere ao envolvimento dos vizinhos Estados nas hostilidades, tornou-se um conflito com a intervenção direta das principais potências do Sistema Internacional. Isso ocorreu com a intervenção de Rússia (e sua força expedicionária) e Estados Unidos (Cerca de 2000 Marines, em apoio à coalizão Curdo-Árabe contra o Estado Islâmico, DAESH, ISIS ou ISIL) no conflito, em que mesmo em lado a princípio, opostos, não chegaram a combater diretamente um contra o outro com suas forças regulares. A eleição de Donald Trump, em 2017, iniciou um novo prognóstico no conflito, já que os Estados Unidos, sob seu comando, mostravam-se cada vez mais inclinados a uma menor participação no conflito. Com a perda de território por parte do DAESH e o enfraquecimento do grupo (acrônimo de Estado Islâmico), Trump pressionava cada vez mais a cúpula militar do seu país (o Pentágono e seu Estado-Maior) para retirar os cerca de dois mil fuzileiros navais do país levantino. Como se sabe, a presença de soldados profissionais estadunidenses em terra é vista como presa, sendo a captura ou morte destes militares, um trunfo para as organizações inimigas e um custo político alto para a administração que os enviou.
Em 19 de dezembro de 2018, os Estados Unidos anunciam a retirada de suas forças da Síria, em um movimento que chocou aliados e colocou uma série de pontos de interrogação sobre o conflito. Nesse breve artigo, gostaríamos de avaliar as consequências da ação dos EUA para os atores envolvidos e para o futuro da Guerra na Síria. Em um primeiro momento, a partir desse movimento, entendemos que os EUA perdem influência nos rumos do conflito, com Washington se colocando à margem das negociações políticas (como nas negociações de Astana, capital do Cazaquistão, que envolvem Rússia, Irã e Turquia apenas), e no desenvolvimento das ações em campo de combate, com apenas Rússia, Irã e Turquia (novamente), além de uma presença lateral de Arábia Saudita e Qatar, com forças regulares a aliados nativos agindo no país. Dessa forma, pode-se ponderar quais podem ser os efeitos da estratégia norte-americana para os atores envolvidos[1].
Entendemos que de todos os grupos implicados, quem fica mais vulnerável são as forças de autodefesa do Curdistão sírio[2] (também conhecida como Rojava), que com o apoio dos EUA, juntaram-se em coalizão com tribos árabes do Norte da Síria e demais grupos étnicos minoritários (como turcomenos, alevis, siríacos, caldeus e yázidis) para formar as Forças Democráticas Sírias (SDF em inglês) e combater o DAESH, coisa que os grupos de autodefesa curdos YPG (Unidades de Proteção Popular) e YPJ ( Unidades de Proteção das Mulheres) faziam sozinhos desde 2014. Essa vulnerabilidade ocorre dado o fato de que o apoio dos EUA protegia os territórios curdos, (mais notadamente os cantões de Kobane, Jazira e as áreas adjacentes retomadas do DAESH ao longo dos últimos 4 anos, compondo a região ao Norte do Rio Eufrates) de uma possível agressão turca em larga escala.
Essa proteção ocorre a partir da legitimação política que o apoio dos EUA aos grupos curdos a partir do bom desempenho na luta contra o DAESH. Também há o fato de que efetivos das forças especiais estadunidenses operam sob as mesmas bandeiras que as forças da SDF. Assim, em caso de ataque turco, Ancara correria o risco de atingir forças estadunidenses, o que causaria constrangimento internacional. Um possível ataque turco ocorreria dado o fato do governo turco considerar as forças e administração curda como uma extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que Ancara considera como grupo terrorista, e, contraditoriamente, Washington também.
Para tentar se proteger de uma possível (e já anunciada) operação militar expandida da Turquia, as lideranças políticas de Rojava já anunciaram tratativas de negociação com as autoridades legalistas em Damasco[3]. Há um evidente conflito de interesses nessa aproximação e também um choque de versões. Em um primeiro momento, as forças curdas da SDF dividiriam com Damasco o controle do tráfego de estradas e movimentos nos territórios e acessos às cidades sob controle da Federação Democrática do Norte da Síria (DFNS da sigla em inglês). Assad em troca garantiria proteção ante uma agressão turca. Ainda que um possível acordo proteja as populações curdas e de deslocados internos que vivem em Rojava, o projeto de Confederalismo Democrático implementado pelos órgãos políticos curdos nos últimos anos seria soterrado pela centralidade baathista de Assad. Isso se o acordo for de fato, nos termos de Damasco. Se a DFNS fazer valer o pré-acordo diplomático e estabelecido como diretriz na constituição de Rojava, o controle territorial passa a ser regional, reconhecendo um status de região autônoma para a Federação.
Outro ator que, em teoria, pode perder com a retirada das forças dos Estados Unidos é Israel. Isso acontece pelo fato de Tel Aviv entender que o vácuo deixado pelos EUA seria aproveitado pelo Irã para aumentar suas capacidades de projeção na região do Oriente Médio, o que colocaria as forças regulares iraquianas e seus proxies, mais notadamente o Hezbollah libanês, perto das Colinas de Golã (fronteira siríaca-israelense), o que seria uma grande ameaça à segurança de Israel. Como outro resultado, Tel Aviv perderia ainda mais a liberdade de ação que tem nos céus sírios, o que limitaria a capacidade de sabotar a transferência de armas e tecnologia de Teerã para o Hezbollah libanês.
No entanto, devido à influência dos interesses de Israel dentro do Governo Trump, causa estranheza a política de retirada das tropas da Síria. Como se sabe, Tel Aviv procura, via lobby (ver aipac.org), influenciar Washington a tomar uma posição mais hostil em relação ao Irã e seu projeto de liderança regional para o Oriente Médio. O próprio secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, é um entusiasta das relações entre EUA e Israel e um dos arquitetos da retirada dos EUA do acordo nuclear com o Irã. Pode-se supor que para agradar Israel, o caminho escolhido por Washington seja de aumentar as sanções contra Teerã para enfraquecer a economia persa.
Se a retirada das tropas americanas prejudica os Curdos e Israel, ela acaba por favorecer outros atores na região. Além do próprio governo Assad, a Rússia e a Turquia são favorecidos com a decisão do Governo Trump. Ainda que a Ancara não seja oficialmente aliada de Moscou ou Assad, não teria mais o desconforto de ver o membro mais importante da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) apoiando e protegendo os grupos que consideram como terroristas. Por outro lado, a Turquia não se mostra disposta em entrar em conflito com as forças regulares sírias e a Força Aérea russa em caso de acordo entre a SDF e Assad. Para evitar isso, o presidente turco, Recep Erdogan já fez questão de se alinhar politicamente com o eixo Damasco-Teerã-Bagdá para tentar isolar a SDF. Simultaneamente, as forças militares da Turquia ameaçam manobras e avançam sobre território soberano sírio, a exemplo do que fizeram na ofensiva militar contra Afrin (um dos três cantões de Rojava), invadido em março de 2018.
Outro Estado que vê com bons olhos a retração dos Estados Unidos é a Rússia. Isso ocorre principalmente pelo fato de que sem os EUA, Moscou consegue se impor como o principal agente conciliatório do conflito, com toda a negociação entre as partes beligerantes passando quase que obrigatoriamente pelas suas mãos. Conseguindo essa posição no conflito sem ter que tomar nenhuma decisão arriscada após três anos de intervenção aeronaval, com cerca de cinco mil soldados e algumas dezenas de aeronaves é um ganho considerável para manter as ambições de Moscou em ser reconhecida como uma grande potência no Sistema Internacional. O único ponto de preocupação é projetar como países como o Irã e a Turquia – além da sempre presente Arábia Saudita, e seu rival Qatar – agirão nesse vácuo criado por Washington. Por mais habilidosa que seja, a chancelaria russa não consegue controlar toda a mesa de discussões. Logo se não houver consenso entre os beligerantes (o que é quase impossível), Putin e Lavrov terão dificuldades em obter um denominador que agrade a todos[4], ou que ao menos seja aceito por todos.
Pelo fato da China não ter participado do conflito na Síria, a retirada das tropas norte-americanas do Oriente Médio é uma boa notícia para Pequim. Como pode ser visto em outros casos (Venezuela, Rússia, Irã), a política externa chinesa se aproveita das linhas de menor resistência para servir como uma alternativa ao papel dos EUA. Não estranha, portanto, a função que Pequim deverá exercer como responsável pela reconstrução da Síria. É importante ressaltar que a Síria faz parte da Nova Rota da Seda, e com a redução do papel norte-americano no Oriente Médio, Pequim apresenta-se como um parceiro viável e com grandes interesses estratégicos na região. Em 2018, por exemplo, a China apresentou o “Plano de Reconstrução da Síria” que compreende um fundo de dois bilhões de dólares para a construção de uma área industrial capaz de hospedar mais de 150 companhias chinesas. No entanto, se por um lado o afastamento norte-americano do Oriente Médio representa oportunidades para a China, pode também sinalizar o redirecionamento das forças norte-americanas para a contenção da China na região da Ásia-Pacífico em uma mudança do pensamento estratégico dos formuladores de política da Casa Branca.
Já o Irã, enxerga de maneira positiva a presente situação no conflito sírio. Com grande quantidade de efetivos (regulares e irregulares) e equipamentos militares, Teerã não teria dificuldade em direcionar o governo sírio para retomar essas localidades com o uso da força. Outro ponto de interesse é na possibilidade de Teerã, via a falta de um adversário na região Norte da Síria, de com facilidade, conectar por via terrestre, todos os membros do chamado “Eixo de Resistência” (Irã, Síria e Hezbollah, utilizando o Iraque como ligação e que também possui grande população xiita), para a implementação das operações de resistência contra Israel, inimigo estratégico do Governo Iraniano.
Por outro lado, Teerã considera a retirada das forças estadunidenses da Síria como um primeiro passo para que outras nações árabes tentem projetar sua influência dentro da Síria. Isso ocorreria com a reaproximação dos países árabes que isolaram Damasco no início da Guerra Civil. Na última semana, os Emirados Árabes Unidos reabriram sua embaixada no país, sinalizando que outros países árabes, como a Arábia Saudita, futuramente o façam. Como os países do Golfo possuem mais recursos financeiros que o Irã, estes poderiam tentar cooptar Assad a não cooperar com os iranianos. Essa preocupação decorre do fato de que mesmos aliados, a Síria permaneceu próximo ao Irã não apenas pela proximidade entre as populações alauita síria e xiita iraniana, mas também porque não havia ninguém mais na região pronto a ajudar Assad a vencer a guerra[5]. Considerando a projeção de poder saudita sobre o Líbano, é de se presumir que os países do Golfo vão tentar servir como fiadores de um novo pacto de Assad com a maioria sunita do país.
Para o governo sírio, em Damasco, a retirada das forças estadunidenses foi uma notícia muito boa e isso acontece por dois distintos motivos. O primeiro é que a saída dos estadunidenses enfraquece os grupos opositores, que hoje estão encapsulados no Norte do país, e que contavam com a presença dos EUA para “constranger” as ações das forças legalistas e seus aliados iranianos e russos. Também pode vir a baixar a moral das forças da SDF, que com medo de uma invasão turca, viriam até Assad para negociar, de preferência sob termos lucrativos para Damasco, como o abandono da ideia de federalização da Síria. O segundo motivo é que o recuo das forças estadunidenses sinalizaria aos Estados que financiam a oposição, de que Assad venceu (ou vencerá) logo o conflito, e que é hora de restabelecer laços políticos e econômicos. Isso praticamente isola Israel na região (que ainda demanda a deposição de Assad) e de quebra, permitirá a Assad escolher em quais termos irá se engajar com os seus vizinhos no médio prazo[6].
Por fim, parece que se inicia uma nova fase do conflito na Síria. As razões da decisão do Governo Trump de retirar as tropas do Oriente Médio ainda não estão evidentes e qualquer afirmação pode ser precipitada. No entanto, cabe avaliar no futuro, se a decisão do Governo Trump não estaria ligada a uma saída do conflito que sirva como instrumento político para as eleições de 2020. Além disso, outra análise possível é o do reordenamento estratégico da política externa norte-americana focando na contenção da China e apontando baterias para o eixo Ásia-Pacífico. O certo é que o Governo Trump, ao contrariar o desejo de aliados regionais e favorecer os adversários com interesse na Síria, parece demonstrar mais um sintoma da queda da projeção global de força dos EUA. A atual administração parece tentar também solucionar conflitos domésticos operando com o intuito de atingir os interesses da elite política e econômica presentes dentro do seu governo. Por consequência, há no Oriente Médio menos excedentes de poder fáticos, duros, da Superpotência (e seus ex-aliados ou quase-aliados europeus) diante do aumento da importância dos potências regionais (Israel, Turquia, Arábia Saudita e Irã), além da evidente presença quase como árbitra de conflitos por parte da Rússia.
Ressaltamos que toda “análise internacional” quase sempre enxerga o “tabuleiro” de cima para baixo, mimetizando o comportamento, ou a projeção de mentalidades das Potência, fazendo uma construção ideológica hegemônica com aparência de “leitura geopolítica”. Tentamos fugir destes clichês colonizados, mas observando o comportamento dos EUA, isso nem sempre é possível. No cenário concreto e complexo da Guerra da Síria, do Grande Oriente Médio, do Mundo Árabe, Mundo Islâmico e Ásia Central, uma afirmação é certa: as potências, a Superpotência, tem capacidade de instabilizar, de gerar caos, mas nunca uma nova ordem, menos ainda um ordenamento que favoreça o conjunto de agrupamentos étnicos, religiosos e culturais, quiçá uma ordem econômica menos injusta. A saída na Síria se encontra nos poderes locais, onde há permeabilidade das demandas sociais, a começar pela própria existência da DFNS, ou seja, da resistência democrática, pluriétnica, igualitária e não sectária de Rojava. Se Damasco conseguir conviver com isso, o conflito está “solucionado”, restando “apenas” o impasse através da imposição de derrotas militares sobre a segunda maior força militar ainda na OTAN, a Turquia sob ditadura constitucional de Recep Tayyip Erdogan e seu projeto neo-otomano imperial.
*Pedro Guedes é graduado em relações internacionais e acadêmico de direito; Augusto Colório é graduado em relações internacionais e mestrando na área; Bruno Lima Rocha é professor de relações internacionais e de jornalismo, doutor em ciência política e especialista em Oriente Médio. Todos são membros do Grupo de Pesquisa Capital e Estado (capetacapitaleestado.wordpress.com)
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