Internacional

De “crimes passionais” a feminicídios

Cartaz chamando para a “paralisação” de mulheres, por uma hora, sob o lema “Se meu corpo não importa, produzam sem mim”, na Argentina, no contexto das mobilizações contra a violência de gênero que foram disparadas no mês passado pelo assassinato de Lucía Pérez.
Cartaz chamando para a “paralisação” de mulheres, por uma hora, sob o lema “Se meu corpo não importa, produzam sem mim”, na Argentina, no contexto das mobilizações contra a violência de gênero que foram disparadas no mês passado pelo assassinato de Lucía Pérez.

por Fabiana Frayssinet, da IPS –

Buenos Aires, Argentina, 1/11/2016 – Ainda há diferenças na tipificação dos feminicídios, mas o conceito começa a ganhar força na Argentina. Já não se fala de “crimes passionais”, mas de assassinatos de gênero. A mudança de linguagem é o primeiro dos muitos passos que devem ser dados para erradicar a cultura de violência. As mudanças conceituais são o resultado das mobilizações feministas, como a de 3 de junho de 2015 e as desse ano, que se traduziram em maciças marchas sob o lema Nem Uma a Menos.

Entre elas se destacou a do dia 19 de outubro, após o brutal assassinato da adolescente Lucía Pérez. A jovem de 16 anos, da cidade de Mar del Plata, foi drogada, violentada, e empalada até morrer, um caso que uniu milhares de mulheres e homens, sob o mesmo lema: “chega de feminicídios”.

“Foi uma mobilização profundamente radical, de irmandade entre mulheres de identidades diversas que fazem da diferença uma fonte de seu poder”, disse à IPS a coordenadora do programa Sul-Sul do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), Karina Bidaseca, que também é da Rede de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet).

“Se tocam em uma, todas nos movimentamos”, “Nos queremos vivas”, foram outros lemas que ultrapassaram as fronteiras nacionais, da América Latina até alguns países europeus, como Espanha e França, o que “marca a possibilidade de imaginar e tecer um novo projeto social que questione a cultura patriarcal em todas suas dimensões”, acrescentou Bidaseca, autora do livro Escritos nos Corpos Racializados. Línguas, Memória e Genealogias (Pós)-Coloniais do Feminicídio.

A última mobilização foi precedida de uma “paralisação” de mulheres por uma hora, sob o lema “Se meu corpo não importa, produzam sem mim”. Bidaseca pontuou que “foi uma paralisação de mulheres, fato inédito na história das mobilizações femininas, que mostra por meio desse lema um corpo que se rebela contra o capital, que alerta para o dano que está causando a crueldade na malha simbólica e na reprodução do capitalismo na divisão das riquezas que produzem as mulheres nas casas e fora de nossas casas”.

Desde 25 de novembro de 2014, vigora o primeiro Registro Nacional de Feminicídios da justiça Argentina, que compreende todas as causas por homicídios de mulheres (meninas, adolescentes e adultas) cometidos por homens por razões associadas ao seu gênero. Segundo esse informe, em 2015, 235 mulheres foram mortas nessa condição. Em 20% dos casos havia denúncias prévias por violência de gênero e em 70% o assassino era conhecido da vítima ou em alguma oportunidade ela havia confiado nele. Apenas sete casos tiveram condenação.

Mas esse e outros registros considerados indispensáveis para desenhar políticas públicas contra a violência de gênero apresentam diferenças com os de organizações não governamentais. Segundo o documento elaborado pela Casa do Encontro a partir de informes da imprensa houve 286 feminicídios, além de outros 42 “vinculados” de homens e meninos em 2015.

Sob esse conceito se incluem as pessoas assassinadas ao tentarem impedir o feminicídio ou “que ficam presas na linha de fogo”. Também envolve os que têm vínculo afetivo ou familiar com a vítima, ou que foram assassinados pelo feminicida para castigar e destruir psicologicamente quem consideram sua propriedade.

Além disso, o informe considera “as vítimas colaterais”. Entre 2008 e 2015, 2.518 filhas e filhos ficaram órfãos, 1.617 deles eram menores de idade. “Consideramos que precisa haver ajustes porque há diferenças de conceitos”, disse à IPS a presidente da Casa do Encontro, Ada Rico. Por exemplo, os casos enviados ao tribunal não monitoram os de “agressores suicidas” (que se matam após praticarem o feminicídio). Tampouco de roubo com assassinato após um abuso sexual.

“Se um homem rouba e também estupra e assassina a vítima mulher é um feminicida em todos os sentidos”, ressaltou Rico. Segundo sua organização, 50% dos feminicídios incluem abuso sexual seguido de morte, e os restantes 50% ocorrem no contexto de relações de casa, antes conhecidos como “crimes passionais”.

De acordo com Rico, “hoje há muito mais visibilidade nos meios de comunicação dos casos de feminicídio e também outro tratamento. Quando começamos, em 2008, se falava de crimes passionais, uma forma de justificar a conduta do agressor. Hoje se fala de violência de gênero e feminicídios”.

Para a ativista, o movimento Nem Uma a Menos, que contribuiu para a mudança conceitual, é um reflexo da “sociedade que se manifesta abertamente contra a temática da violência de gênero” e impulsiona muitas famílias e vítimas a denunciarem. Depois de cada marcha, na Casa do Encontro “triplicam os pedidos de informação, não só de vítimas, mas também de familiares, perguntando quais são as ferramentas para ajudar a vítima”, contou Rico.

Porém, a mobilização não incide na redução de casos. Segundo o observatório da organização Mulheres da Matria Latino-Americana (MuMaLá), 226 mulheres foram assassinadas por sua condição de gênero, de janeiro a outubro de 2016. “Os feminicídios não aumentaram, mas não diminuíram. Há cada 30 horas uma mulher é assassinada em nosso país”, afirmou Rico, embora, observou, atualmente haja maior visibilidade dos casos na mídia e uma “sociedade mais atenta”.

Para Mabel Bianco, presidente da Fundação para Estudo e Pesquisa da Mulher (Feim), o lema Nem Uma a Menos ajudou a que “a sociedade argentina, sem diferenças de nenhum tipo, peça não só políticas mas uma mudança cultural em toda a sociedade”. Ela declarou à IPS que “os feminicídios não vão desaparecer de um dia para outro, por uma marcha ou uma lei ou um plano do governo. Isso exige muito mais tempo e um trabalho em diferentes planos”.

Mas, segundo Bianco, “é chave, por exemplo, que a mídia mude suas mensagens sexistas que continuam mantendo a discriminação das mulheres ou sua menor valorização em relação aos homens, com programas que continuam mostrando as mulheres como meros corpos e não como trabalhadoras do lar”.

O Conselho Nacional das Mulheres (CNM) apresentou o Plano Nacional de ação para a Prevenção, Assistência e Erradicação da Violência Contra as Mulheres 2017-2019, que inclui demandas da Nem Uma a Menos, como lares integrais para as que estão em situação de violência com equipes interdisciplinares e programas de capacitação sobre gênero para a polícia.

Enquanto isso, “estão sendo feitas algumas coisas como o uso da tornozeleira em algumas províncias, reforço e atualização da linha telefônica 144 de denúncias, término dos abrigos iniciados há dois anos pelo governo anterior”, mas isso também implica que as províncias avancem e ampliem seus orçamentos, enfatizou Bianco. No entanto, ela questionou o enfraquecimento de programas como o da Educação Sexual Integral nas escolas, que “inclui revisão e mudança de papéis estereotipados de gênero que mantém a desigualdade das mulheres”.

Já no plano internacional, Bidaseca se preocupa pelo “giro à direita” que define o movimento de mulheres como uma “ideologia de gênero”. “Trata-se de um roteiro fundamentalista de grupos reacionários que pretendem acabar com as conquistas obtidas pelo movimento de mulheres ao longo de sua própria história”, concluiu. Envolverde/IPS