Por Anna Haddad –
Um negócio social que dá destino e transforma resíduos de tecidos, como uniformes usados, em matéria-prima para outros produtos em vez de deixar que sigam para aterros ou para a incineração. Essa é a Retalhar, uma empresa de logística reversa têxtil que tem como sócios dois amigos de infância, o gestor ambiental Jonas Lessa, 24, e o biólogo marinho Lucas Corvacho, 27.
É curiosa e pouco convencional a trajetória de Jonas até o empreendimento social. Quando questionado sobre o caminho que o levou à ideia da Retalhar, ele credita em grande parte à educação. Estudou desde sempre na Escola da Vila (que adota a filosofia construtivista) e sempre teve o apoio da família para fazer o que quisesse. “Meu pai sempre falou muito sobre sustentabilidade. Chamava os filhos e falava sobre a crise da água, o desperdício de comida e nos motivava a refletir sobre nosso papel no mundo”, conta.
Além do curso de Gestão Ambiental na USP, Jonas diz que outros dois processos pessoais, paralelos, o levaram a fazer o que faz hoje: o voluntariado na ONG Teto, que ajuda comunidades precárias construindo moradias (ele passou quase um ano lá e atuou em vários níveis hierárquicos da organização), e o envolvimento com a bateria que animava a torcida da faculdade, a Bateria Bandida.
“Brinco que comandar a bateria foi meu primeiro grande case de sucesso como líder”, diz Jonas, que acabou tornando-se mestre remunerado da bateria do Insper, além de tocar em escolas de samba paulistanas como a Pérola Negra e a Águia de Ouro. Foi por causa do envolvimento com uma outra bateria, em Paúba, praia do litoral norte de São Paulo onde passa as férias, que Jonas e Lucas começaram a trabalhar juntos no que seria a semente do negócio dos dois.
“O Lucas era meu amigo de verão. Sempre nos encontrávamos em Paúba. Em 2013, estávamos super engajados em um movimento para reerguer o carnaval da cidade e ele me perguntou se eu conhecia alguém interessado em trabalhar com gestão ambiental na empresa da família dele. Respondi que eu era essa pessoa”, conta.
Um negócio social incubado dentro de uma empresa familiar
Jonas ainda não sabia o que queria fazer da vida, mas já planejava deixar de ser mestre de bateria. Em maio de 2013, começou a trabalhar com Lucas na Lutha Uniformes, empresa que desenvolve e confecciona uniformes, fundada pelo pai dele. Por lá, Lucas já atuava articulando ações sociais, culturais e ambientais. Jonas entrou para dar base teórica o que o amigo fazia intuitivamente: “Ele tinha viés prático muito forte, mas teórico quase inexistente. Foi aí que eu entrei”.
Uma das questões de Lucas dentro da empresa era a coleta seletiva. A ideia era minimizar a quantidade de resíduos que iam para o aterro, mas, para isso, era preciso entender como administrar os 400 quilos de sobras de tecido por mês. Jonas conta que este é um problema subestimado pelo poder público:
O esforço dos dois amigos, na jornada para resolver o problema dos retalhos, acabou levando-os a perceber uma lacuna no mercado — que destino dar aos rejeitos da indústria têxtil? A partir daí eles desenvolveram a ideia da Retalhar.
As pesquisar uma solução para os retalhos, Lucas descobriu uma máquina que tritura e desfibra o tecido, produzida por uma empresa pequena no Brás. Com ela, pensou em dois destinos possíveis aos montes de retalhos que sobravam dos uniformes da Lutha: parte poderia ser recosturada por cooperativas de costureiras e ser transformada em brindes; e parte poderia ser desfibrada para se tornar matéria-prima para outros produtos têxteis (mantas térmicas, mantas acústicas, cobertores populares etc).
Como em um novelo de lã, nessa história uma coisa puxa a outra. Jonas conta: “O problema da coleta seletiva da empresa estava encaminhado. Mas aí o Lucas recebeu a ligação de um cliente encomendando uniformes novos e pedindo auxílio para lidar com os velhos. Como ele já tinha as soluções, ajudou esse cliente, que ficou muito feliz. Depois, surgiram outros e o Lucas entendeu que seria uma demanda contínua. Foi quando ele pediu minha ajuda com o assunto”.
E foi assim que, em dezembro de 2013, os pedidos de alguns clientes e também a demanda da área de sustentabilidade da TAM fez os dois amigos, companheiros de trabalho e até aquele momento intraempreendedores na Lutha, partirem para o voo solo e criarem oficialmente a Retalhar. Foi tudo tão apressado que o logo e o nome da empresa foram definidos às pressas. Mas, como a gente vai vendo, uma coisa puxa a outra.
Em janeiro de 2014 os meninos conheceram a Rede Papel Solidário, um instituto que ajuda entidades do terceiro setor a se estruturarem. Ali, aprenderam mais sobre a definição de negócio social e resolveram se formalizar como um.
Nasce o negócio e, com ele, os problemas
A nova empresa começava a se organizar, com os clientes indicados pela Lutha e uma nova estrutura de trabalho tomando corpo. Logo viriam os primeiros gargalos, especialmente no confronto do que eles tinham imaginado com a viabilidade financeira do projeto. “Percebemos que éramos contratados para lidar com o lixo do cliente, que normalmente era incinerado ou ia para o aterro, o que é consideravelmente mais barato. O orçamento disponível para nós era incompatível com a produção de brindes a partir dos retalhos, como pretendíamos fazer”, conta Jonas.
O problema de caixa levou os sócios a mudarem a estratégia que adotavam até aquele momento: passaram a fidelizar o cliente vendendo o serviço de reciclagem (processo de preparar e desfibrar o tecido) isoladamente e a confecção dos brindes passou a ser uma parcela extra, remunerada em separado, do serviço. Funcionou.
E o novelo da Retalhar daria mais uma volta pouco tempo depois, quando um cliente levantou outra questão complicada, durante uma reunião para fechar um novo contrato: como fazer a lavagem dos uniformes antes de serem reciclados? A Retalhar não fazia essa lavagem, e atender a essa nova demanda mexeu bastante com a estrutura de custos. “Até hoje estamos tentando encontrar uma solução sustentável para a questão”, diz Jonas.
A incubação real e a busca por investidores
Em setembro de 2014, Jonas fez um curso de Responsabilidade e Empreendedorismo Social, parceria entre FEA/USP, NESst Brasil e Blackstone Foundation. Lá, conheceu outros empreendedores sociais e desenvolveu um plano de negócios pra a Retalhar, que foi premiado com um capital semente de 20 mil reais, uma viagem para o Peru para conhecer outros negócios sociais e com a incubação da NeSst.
Além da incubação da NeSst, a Retalhar conta hoje com a mentoria de Valentim Biazotti, da pré-aceleradora de negócios sociais Worth a Million. “Numa das bancas do curso, conheci um dos gestores da Quintessa, uma aceleradora de negócios sociais. Participamos do processo seletivo deles, mas não passamos. Mesmo assim, no começo desse ano, eles entraram em contato com a gente e nos indicaram para o Worth a Million. O Valentim vem sendo nosso grande mentor há seis meses”, conta Jonas.
A Retalhar ainda está se estruturando como empresa, definindo contrato social e afinando planos para o futuro. Quando questionado sobre a visão tradicional de sucesso e lucro, Jonas diz que não pretende ficar rico:
Mesmo sem querer ser gigante, o pequeno negócio social já fez a gestão de sete toneladas de uniformes e segue em negociação para mais 35 toneladas. A equipe é formada por apenas quatro pessoas: Juliana Vilas Boas, Leonardo Carvalho e os sócios. Atualmente, a cartela de clientes inclui pequenos e grandes, com empresas como TAM, Odebrecht, FedEx e concessionárias de rodovias estaduais paulistas.
O sonho dos jovens empreendedores é ainda maior: além da logística reversa de uniformes e da trapologia (produção de brindes a partir dos retalhos), Jonas e Lucas pensam em um dia desenvolver algo de alta costura a partir dos resíduos têxteis. Também batuca neles a vontade de fazer reinvestimentos na área social da Retalhar: eles pensam em cursos de aperfeiçoamento para as costureiras da rede, cursos de gestão para os filhos delas e em abrir linhas de pesquisa ligadas ao negócio. “Não queremos só gerar renda para os grupos de costura, isso qualquer empresa faz. Queremos gerar empoderamento nas cooperativas com as quais trabalhamos”, diz Jonas. E segue desenrolando o seu novelo, vendo oportunidade de negócio e propósito onde alguns ainda enxergam só lixo.
* Publicado originalmente no site Projeto Draft.