ODS10

A vida na Caatinga, o Brasil que o asfalto renega

Por Liliana Peixinho, jornalista e ambientalista nordestina –

A jornalista Liliana Peixinho é um tipo raro de profissional, daqueles que não desiste frente a nenhuma adversidade. Sua trajetória pelo Nordeste brasileiro é a saga de uma repórter que não apenas relata a vida do sertanejo na Caatinga, no semiárido, mas traça um retrato do Brasil profundo, aquele que o Brasil do asfalto não quer e não gosta de ver.

A Agência Envolverde vai publicar uma série de textos com o relato de suas andanças pelo semiárido nordestino. Serão de uma a dois textos por semana e abriremos um espaço permanente para sua visão de Brasil como colunista permanente da Envolverde. Qualquer jornalista que tenha a resiliência que Liliana Peixinho tem demonstrado nos últimos anos merece nosso apoio!

Dal Marcondes – editor

O paraíso existe e é fruto de muita labuta

Conforme pesquisas feitas pelo Movimento AMA – Amigos do Meio Ambiente, a partir de abril de 2013 –  durante trabalho sobre a série SECA SERTÃO ADENTRO, prêmio de Jornalismo e Sustentabilidade Mercado Ético – descobrimos, com ineditismo, na Comunidade Barreira do Tubarão, município de Heliópolis, nordeste da Bahia, um projeto iniciado em 2010, em área típica nordestina, onde, a olhos rápidos, nada poderia se produzir. Mas ao longo dos anos, com muito trabalho, pesquisa aplicada e compromisso sustentável, de fato, a comunidade vem garantindo cerca de 80% de tudo o que consome.

O modelo de gestão cooperativo é exemplar e a credibilidade dos trabalhos tem gerado diversas oportunidades de conhecimento das técnicas aplicadas para diversas outras comunidades agrícolas, como exemplo multiplicador. Grupos de agricultores, com apoio de associações, viajam de suas cidades para vivenciar, in loco, como os produtores agrícolas orgânicos do Recanto realizam os trabalhos.

História e desafios de vida

Os anos eram de 1970. O processo migratório do Nordeste para o Sudeste – São Paulo, basicamente, estava em alta no cenário econômico nacional.  Em paralelo, as pessoas sentiam na pele os desafios contra a garantia de direitos. A luta pela permanência no lugar onde nasceram e se criaram, na contramão do crescente movimento do êxodo rural nordestino para cidades prometidas, exigia coragem e fé perseverantes. A união da família numerosa seria a base para a sustentação do sonho do casal Bento Anchieta da Cruz e Maria Eunice Peixinho Cruz: cuidar e viver no ambiente de origem, de forma harmoniosa com a Natureza.

Bento e Eunice nasceram – ele em março de 1941 e ela em abril de 1939 – se criaram e moraram na roça toda a vida. Ele em Macambira, ela em Tanque Novo, distritos de Ribeira do Pombal, nordeste da Bahia. A vida os uniu e se casaram  em janeiro de 1965. Bento e Nice, então recém-casados, residentes e trabalhadores em Macambira, queriam mudar de vida, morar e trabalhar em outro lugar, próximo, mas onde as condições da terra pudessem ser mais propícias para o plantio próprio. Entre muitas habilidades, Bento era pedreiro, pequeno agricultor familiar e trabalhava em sistema meeiro – aquele onde se planta numa área de outra pessoa para dividir a produção, ao final da colheita. Nice, além de cozinhar, costurar, lavar, cuidar dos filhos e dos animais, também ajudava o marido, na roça e nos negócios.  Aos poucos, com a família crescendo, o número de filhos aumentando, o casal planejava sair de Macambira para outro lugar, onde pudesse plantar em área própria. Bento, então, resolveu seguir o caminho de uma das irmãs, Zefa, que morava com a família num lugar chamado Barreira do Tubarão, município de Heliópolis.

Filhos, amor e cuidado

O casal teve 11 filhos. No início dos anos 1970, a peleja de vida ficou dividida nas estradas, sobre mulas e carroças, com idas e vindas, num percurso de cerca de 40 quilômetros, para aproveitar o tempo bom, de invernos que variavam entre maio e início de julho, para plantar, e no final de julho e agosto, pra bater, ensacar, estocar e vender a colheita.

Entre um serviço e outro, Bento e a mulher Nice, começavam uma nova vida, em outro lugar. Foram cinco anos de idas e vindas, entre Macambira e Barreira do Tubarão, na labuta entre o plantio na roça; e os serviços de pedreiro na região. Nesse ritmo, trabalhavam numa área comum, com a irmã Zefa e sua família.

Dividiam a moradia, faziam pequenos ranchos para se abrigar do tempo, preparavam   café em fogão improvisado com pedras e galhos de madeira morta, cozinhavam aipim, para tocar a labuta diária. Dona Zefa, mulher guerreira, incansável e de coração generoso, além de amamentar seus filhos, foi ama de leite de alguns dos filhos de Bento e Nice. “Eram duas crianças mamando, ao mesmo tempo, uma num peito, e outra, no outro”, lembra Zefa, com a satisfação típica de quem gosta de ajudar o outro.

Um novo tempo

Tempos depois, Bento comprou uma terra mais adiante da casa da irmã, e os planos de melhoria de vida tomaram forma, com muito trabalho e disciplina. O plantio era o tradicional: feijão, milho, mandioca. O tempo passa, os filhos crescem, a harmonia familiar se consolida e o gosto pelo cuidado com a terra aumenta na mesma proporção do compromisso com a diversificação e preservação do ambiente.

Aos poucos, na nova terra, passaram a plantar mais, guardar excedentes num pequeno armazém, e com a venda do que produziam começaram a construir a casa da família. Os tempos eram de chumbo! Exigiam coragem e determinação. Nada podia esmorecê-los. O dia começava antes de o sol raiar e entrava noite adentro, no cuidado com a casa e as crianças. Entre um serviço e outro, Bento e Nice se  revezavam nos trabalhos, entre a roça, a casa e a educação dos 11 filhos, dos quais cinco são surdos-mudos. Quando união e amor são armas para os desafios, a labuta até parece leve. Assim o casal enfrentava a vida, enquanto os filhos cresciam e ajudavam em tudo.

A família, aos poucos, vai se mudando para Barreira do Tubarão. Com o passar do tempo o casal cria os 11 filhos que Dona Nice, 77 anos, faz questão de dizer, cronologicamente, o nome e a data de nascimento de cada um, da mais velha, Zélia, nascida em 17 de novembro de 1965, ao mais novo, José Renato, de 31 de agosto de 1980 Todos se casaram e tiveram filhos, à exceção do caçula, Renato, que é padre e recentemente voltou da Alemanha, onde foi aprofundar os estudos teológicos. Padre Renato é presente na comunidade de Barreira do Tubarão e com honra é recebido para celebrar missas, batizados, casamentos, e fortalecer os rituais sagrados, compromisso de um povo movido pela fé cristã.

Cinco surdos-mudos na família

Entre os desafios da família, cinco dos onze filhos nasceram surdos-mudos. A família desenvolveu um método próprio, com uma linguagem focada na inclusão. Todos se comunicam bem, se entendem perfeitamente e, mesmo os netos que nasceram com a deficiência auditiva, são pessoas dotadas de alta capacidade de interação no trabalho coletivo. Participam de reuniões, trabalham , são independentes, felizes e formaram novas famílias, com lastro no amor coletivo.

Com novas famílias, surgidas dos filhos do casal Bento e Nice, os desafios aumentaram. A partir de meados dos anos 1990, as ideias e propostas sobre formas de produção mais harmônicas com o ambiente ganham espaço, por meio de discussões em grupo, durante as refeições, nas noites de lua, sentados nas varandas das casas, entre uma labuta e outra na roça. Daí surge novo projeto, focado em agroecologia, que é amadurecido e colocado em prática sob o símbolo afetuoso, batizado de “Recanto Peixinhos”, na localidade de Barreira do Tubarão.

Continua…

(#Envolverde)