Opinião

Preconceito, Cultura, Política e Utopias (XI)

por Samyra Crespo –

Rio de Janeiro, decadência e charme – A chegada.

Minhas lembranças do Rio, antes de vir morar aqui eram, da infância: folguedos com primos num casarão em Laranjeiras, visitas a parentes do meu padrasto e mãe; ele nascido na Tijuca, mamãe em Santa Maria Madalena, terra da Dercy Gonçalves (ela sempre gostou de dizer isto). As irmãs do meu padrasto eram todas professoras que tinham se tornado diretoras “de grupo escolar”, um irmão militar e outro possuía uma pequena barbearia na Tijuca.

Já os irmãos da minha mãe e avós se espalhavam pelo interior: Macaé, Bom Jardim, Campos, Rio Bonito – onde íamos em raras ocasiões.

Na infância, vinha de férias e de trem. O trem saía às onze da noite da Estação da Luz, em Sampa, e chegava no Rio às sete da manhã. Era uma viagem decente e amávamos dormir nas cabines apertadas e curtir a excitação de estar a poucas horas da praia.

Praia era tudo para quem morava em São Paulo, terra do frio e da garoa.

Na minha juventude o destino das férias era a baixada santista e as viagens ao Rio rarearam.

Meus pais acalentavam o sonho de uma vida de aposentados no Rio, e assim o fizeram uns anos depois que me casei. Acho que vieram em 1979.

Meu pai se aposentou como executivo da Cássio Muniz, o grupo que tinha lojas de departamento e o selo de discos Chanteclair. Como a Sears, faliu.

Chegando ao Rio, seguiram o padrão: foram morar em Copacabana, pagando aluguel. Com a inflação descontrolada, o dinheiro ia todo para a poupança para “render”. Os brasileiros tinham se tornado agiotas do tesouro nacional. Com aqueles rendimentos, era bobagem comprar imóveis.

E a vida na beira da praia se tornou um “vidão”. Por pouco tempo. Logo um câncer começou a roer o sonho, depois o corpo e meu padrasto, a quem eu chamava e amava como pai, tinha os dias contados.

Por um acaso ou sorte, neste mesmo período ofereceram ao meu marido, na mesma empresa em que trabalhava, um contrato no Rio – para modernizar os processos de trabalho, uma espécie de “reengenharia “. Viemos, então.

Dezembro de 1984. Moramos no Hotel Glória e depois num Flat na Barata Ribeiro até encontrar um lugar para morar. Com essa mudança pensava em ficar perto dos meus pais e apoiá-los, o que fiz.

Na minha bagagem, dois filhos pequenos que tratei de matricular, contra a vontade do meu marido, numa escola católica alinhada com a teologia da libertação.

Caixas e caixas de livros úteis à minha tese de doutorado que andava em fase de pesquisa.

E duas cartas de referência na bolsa. Uma para o dirigente do PC responsável pelo recém criado Instituto Astrojildo Pereira; e outra endereçada ao ISER – Instituto de Estudos da Religião.

No Instituto Astrojildo Pereira, braço cultural do PC no Rio, iniciei um grupo de História Oral, e comecei o registro da memória de velhos comunistas. O critério era velhice mesmo, tipo pé na cova. Dessas entrevistas longas, horas e horas de conversa, lembro em especial a de Alcedo Coutinho, constituinte de 1946, e deputado durante um breve período em que o PC foi legalizado. Lembro também do Faca Cega, petroleiro, cozinheiro, um negão sorridente, que mantinha com seus próprios recurso uma salinha, um escritório do Partido em Maria da Graça. Parte desse trabalho se acha publicado numa revista – Novos Rumos, que nasceu para celebrar a glasnost e a perestroika, Gorbachev e toda a ideia de que o estalinismo era legado a ser superado- com seus erros e acertos. Naqueles anos iniciais da década de 80′, com a anistia e a volta dos exilados, imperava um clima de renovação.

No ISER, liguei-me a um grupo coordenado por Pierre Sanchis, professor da UFMG, ex beneditino e especialista em catolicismo popular. O grupo reunia acadêmicos, inclusive estrangeiros – que se interessavam por religião, e pelos desafios que a Igreja e leigos católicos abraçavam: o enfrentamento da Ditadura, as pastorais progressistas, o crescimento das comunidades evangélicas, a democratização das escolas católicas. No meu entendimento inicial, meu interesse no ISER era acadêmico. Eu encontrara um ambiente intelectual onde podia avançar meus estudos sobre a influência da teologia da libertação nas escolas católicas, objeto da minha tese de doutoramento.

Além dessa dupla militância, tinha que me adaptar à nova vida.

Passar férias no Rio era uma coisa, morar era outra.

Encontrei uma cidade decadente e fedorenta.

Quase morei no Leme, mas por razões logísticas escolhi Botafogo: boas escolas para os meninos, perto do trabalho do meu marido e excelentes bibliotecas que eu podia frequentar à pé: a da GV (Fundação Getúlio Vargas); a do IUPERJ, de ciência política, a da Casa de Rui, onde havia silêncio para estudar e a do Centro João XXIII – na Rua Bambina, onde se podia encontrar ótimas coleções sobre a história da Igreja.

Comparada com São Paulo, a qualidade de vida material era bem ruim: ruas esburacadas, esgotos que emergiam como gêiseres nas chuvas, alagando ruas e espalhando o mau cheiro. Todo mundo tinha o sagrado direito de levar o cachorro para defecar nas calçadas ou estacionar o carro nelas, obrigando os pedestres a se arriscar nas ruas. Os taxis eram fuscas quatro portas – velhos e desconfortáveis e os motoristas, muitos velhos, com sotaques do português de Portugal eram grosseiros. A comida era pouco variada, os supermercados péssimos e os prédios com sérios problemas de manutenção.

E tinha aquele preconceito danado contra paulistas.

Bem, não foi fácil aquela chegada.

Um amor sincero e apaixonado pela cidade, só viria depois.

… continua no próximo Post.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.

(#Envolverde)