ODS10

ESPECIAL SEMANA DO MEIO AMBIENTE - Nos tatames da Rocinha, uma luta movida pela solidariedade

Por Elizabeth Oliveira, Especial para Plurale – 

Do Rio/ Fotos de Divulgação

Fortalecer o exercício de cidadania pela prática esportiva sempre foi uma das motivações do Rocinha Jiu-Jitsu (RJJ), projeto desenvolvido pela organização sem fins lucrativos de mesmo nome que, há duas décadas tem formado gerações de atletas na Rocinha, apesar de uma série de percalços enfrentados pela falta de patrocínio. Diante da pandemia da COVID-19, seus fundadores e instrutores se lançaram em um movimento solidário para apoiar as famílias de seus 150 alunos com a distribuição de materiais de limpeza, máscaras e alimentos. Essa é uma forma de colaboração para enfrentamento das consequências da crise de saúde pública nessa comunidade carioca, formada em grande parte, por trabalhadores do setor de serviços e do comércio informal. A campanha está em curso, por meio de uma Vakinha virtual, e precisa de doações para cumprir esse objetivo.

A ideia de promover a campanha virtual surgiu há cerca de um mês, durante uma conversa entre o professor de jiu-jutsu, Lenio Fortunato da Silva Filho, presidente da ONG RJJ, e Maria de Lurdes Costa Domingos, professora da Universidade Veiga de Almeida (UVA), onde ele concluiu bacharelado em Direito, em 2018, e ingressou em uma graduação em Educação Física, em 2020, antes das medidas de isolamento social. Ambos já tinham mantido contato, anteriormente, já que ela tem se dedicado à área de Ciências do Meio Ambiente com desenvolvimento de projetos socioambientais em comunidades do Rio de Janeiro e ele vinha buscando alternativas para garantir a sustentabilidade do RJJ. A Feira de Práticas Sustentáveis, realizada em 2019 na instituição, foi um dos espaços para ampliar essa interlocução já que a iniciativa visa à aproximação entre lideranças corporativas, empreendedores e outros segmentos sociais.

Motivado pelo diálogo aberto, desde então, e pelo apoio recebido da UVA, durante a pandemia, Fortunato ressalta o reconhecimento da comunidade sobre a importância do projeto que ajudou a fundar com o apoio de amigos como José Roberto Alves, também professor: “O RJJ é referência como iniciativa local de inclusão social pelo esporte. Alem disso, temos uma equipe muito unida e humana que vem conseguindo resultados excelentes na preparação de atletas.” Alguns, como acrescenta, conseguiram se inserir como profissionais em vários países. Esse é o caso de Rafael da Silva Batista que, inclusive, abriu no ano passado uma filial do projeto na Bélgica e conta essa experiência em depoimento à Plurale.

Os fundadores do projeto – Lenio Fortunato e José Roberto Alves.

Segundo Fortunato, são esses valores que impulsionam não somente o atual movimento solidário, mas toda a trajetória sempre marcada pela dificuldade de conseguir parcerias que ajudassem a manter a infraestrutura de funcionamento dessa iniciativa. O professor reconhece, no entanto, que, nenhuma situação vivenciada anteriormente se compara com a gravidade do atual cenário de saúde pública e suas consequências na Rocinha. Para ilustrar, ele relatou que, no dia desta entrevista concedida à Plurale, havia tomado conhecimento da morte da mãe de um aluno depois de vários dias internada em decorrência da COVID-19. “Pelo mesmo motivo ele já tinha enfrentado o drama de perder o pai e um irmão. Ficamos todos muito abalados emocionalmente”, lamenta.

Para apoiar as 150 crianças e jovens, além de cerca de 100 adultos do RJJ, o professor destaca que seria importante contar com psicólogos e outros profissionais especializados no projeto, embora não tenha como custear esse tipo de atendimento.

Motivação para a parceria

A professora Lurdes Domingos ressalta que o reconhecimento desse quadro de aumento da vulnerabilidade social da população da Rocinha foi uma forte motivação para iniciar o movimento de apoio ao RJJ juntamente com outros profissionais da UVA. Para atender às demandas apresentadas pela comunidade, ela conta que a campanha criada pretende levantar R$ 15 mil. Com a primeira parte da arrecadação já foram comprados e distribuídos 180 kits de produtos de higiene que contemplaram, além dos alunos, os instrutores do projeto que estão sem trabalho e renda devido à pandemia. A expectativa agora é de alcançar a meta para realizar a segunda etapa, referente à compra das cestas básicas.

Por conta da mobilização, Lurdes Domingos relata que professores da sua instituição de ensino, ligados à área de moda, estabeleceram contatos que resultaram em doações de máscaras para o RJJ. Emocionada, ela ressalta que em uma indústria têxtil da cidade funcionários trabalharam em horário extra para apoiar a campanha com a confecção de peças laváveis que já foram entregues. Peças descartáveis foram conseguidas com um empresário a partir do apoio de alunos da universidade que também se envolveram nesse movimento em rede de solidariedade.

Mobilização também envolve ações educativas

A partir da chegada dos materiais de limpeza, os instrutores do RJJ têm se mobilizado na produção de vídeos educativos com mensagens de prevenção à contaminação pelo coronavírus. Dicas de higiene inclusive das máscaras laváveis entre outras preocupações têm sido reforçadas no contato com os alunos por WhatsApp e outras redes sociais.

“Tivemos a ideia de agregar valor a essa campanha, a partir dessas ações educativas desenvolvidas pelos instrutores do projeto da Rocinha. Consideramos que o êxito de práticas como essa tem muito a ver com os laços de afeto já existentes na própria comunidade. A iniciativa tem dado certo com o engajamento de todos”, afirma a professora.

Ela também ressalta a preocupação que houve em transmitir mensagens educativas para o correto descarte pós-consumo, principalmente, dos materiais plásticos das embalagens de produtos de limpeza pós-consumo. “Essas trocas também são importantes para valorizar o sentimento de pertencimento dos moradores. Além disso, as pessoas se organizam à medida que se conectam e essa é mais uma característica dessa mobilização que demonstra a força da união em rede”, conclui Lurdes Domingos

Sobre as doações, Fortunato destaca que a primeira etapa da campanha causou grande comoção às famílias dos alunos. “A situação aqui está muito difícil. Tem gente que se emociona e chora durante os depoimentos de agradecimento para nós e para os apoiadores dessa mobilização”, comenta o professor. “Vamos continuar com a campanha até o final da pandemia. Temos ouvido muitos relatos de famílias que não têm alimentos em casa. Se conseguíssemos arrecadar 250 cestas mensais, seria ideal, pois apoiaríamos não somente as crianças e os jovens, mas os alunos adultos também”.

Com problemas estruturais históricos como a falta de saneamento para a comunidade e condições insalubres de muitas casas, o professor ressalta, ainda, que, além de grande quantidade de casos do COVID-19, a Rocinha tem enfrentado ao longo de vários anos, altos índices de outras doenças transmissíveis como tuberculose e Aids.

De acordo com informações divulgadas pelo G1, com base em levantamento do jornal Voz das Comunidades, até 28 de maio, cerca de mil casos de Covid-19 já tinham sido registrados em favelas do Rio, com 249 mortes. A Rocinha, segundo noticiado, liderava essas estatísticas, com 195 casos confirmados e 55 mortes, até então.

Saiba mais sobre o RJJ

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Da Rocinha para a Bélgica: filial do RJJ é aberta por ex-aluno

“Eu conheci o Projeto Rocinha Jiu Jitsu, em 2008, levado por um companheiro de trabalho, também morador da Rocinha. O esporte me encantou pela disciplina, pelo companheirismo e respeito aplicados. Isso era tudo o que faltava naquele período da minha vida (passagem da adolescência para vida adulta).

Além disso, me chamava atenção a maneira como os professores tratavam cada um dos alunos, fazendo com que nos sentíssemos únicos. Eles nos davam conselhos dentro e fora dos tatames. Esse tratamento recebido não nos deixava outra escolha, a não ser retribuir da melhor maneira possível, dentro dos tatames, mas principalmente, fora deles.

Em um dado momento da minha vida, a admiração e o respeito por esse projeto eram tantos, que eu, como jovem que gostava de virar as noites pelas vielas da Rocinha, passei a ter vergonha quando algum dos meus professores me via pela manhã fazendo coisas que não eram compatíveis com o esporte e, muito menos, com os exemplos que nos eram dados por eles. Essa mesma vergonha foi me moldando e me fazendo abandonar maus hábitos e más escolhas. Eu passei a querer ser como os professores. Eles eram meus heróis e eu queria honrar o projeto.

Assim, comecei a mudar o meu estilo de vida. Comecei a viver o projeto, a me dedicar ao esporte e, ao mesmo tempo, a ser mais disciplinado com a minha vida. Essa disciplina me fez procurar evoluir. De tanto ouvir dos professores que eu era capaz, eu comecei a acreditar nisso, realmente. O primeiro passo foi procurar aprender outro idioma, com uma escola parceira do projeto, na época. O segundo passo, foi cursar uma faculdade, graças a um aluno que, também conheci no projeto, e que conhecia alguém que poderia me conseguir uma bolsa de 50%.

Após anos de treino, eu comecei a dar aulas para crianças do projeto (sob a supervisão do Lenio). Isso durou até 2015, quando eu me mudei para a Bélgica. Essa mudança se deu pelo fato de eu trabalhar com hotelaria e, naquele momento, já estar falando bem inglês, além de ter interesse em aprender francês para ser um profissional mais completo. Por outro lado, o Brasil já estava passando por uma crise econômica, após a Copa do Mundo de 2014, o que fez com que muitas pessoas na rede hoteleira perdessem seus empregos. Eu tinha uma namorada belga que conheci no Brasil e isso também facilitou muito a minha decisão.

Hoje trabalho na rede Marriott, em Bruxelas. Estou casado e tenho uma filha de nove meses. Aqui em Wavre, cidade onde eu moro, criei com a minha esposa, uma filial do Projeto Rocinha Jiu Jitsu (RJJ Belgium). No momento essa filial se encontra fechada devido à pandemia de COVID-19. Tudo foi fechado por aqui e os impactos foram enormes. Cerca de 8 mil pessoas perderam a vida devido à doença e a Bélgica, bastante abalada, chegou a ser o 5° país europeu com maior número de mortos. Desde, 3 de maio, o comércio vem abrindo, gradativamente. Em 18 de maio, foi a vez das escolas abrirem, parcialmente, respeitando o distanciamento social. As fronteiras do país também foram fechadas, até mesmo para cidadãos europeus, já que a preocupação com o controle da pandemia por aqui é total. Com isso, passo o dia em casa com a minha esposa e a minha filha, seguindo todo o protocolo para que possamos estar seguros e saudáveis quando tudo isso passar.

Mas, se eu estou onde estou e, se sou o que sou, devo tudo ao RJJ e aos seus professores. Esse projeto sem igual não mede esforços para ajudar a todos.”

Rafael da Silva Batista, 34 anos

Jiu jitsu – belgium nas redes sociais

Instagram: rjj.belgium

Facebook: rocinha jiu jitsu – belgium

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Entrevista com o Professor Vantuil Pereira – Solidariedade, um “ponto de partida” para enfrentar a pandemia

Uma força-tarefa formada por pesquisadores e professores de universidades do Rio de Janeiro está somando esforços com lideranças comunitárias e integrantes de movimentos sociais de favelas da cidade, dentre as quais a Rocinha, com o intuito de colocar em prática um plano de ação construído conjuntamente para enfrentamento da COVID-19. Nesta entrevista à Plurale, o professor Vantuil Pereira, diretor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida (NEPP-DH), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) apresenta alguns aspectos centrais dessa iniciativa, na qual se insere. Nesse contexto, ele destaca a importância de ampliação dessa aproximação entre as universidades e as comunidades socialmente mais vulneráveis, em um momento de crise que ampliou a visibilidade do desmonte do sistema de saúde pública, além de ressaltar alguns desafios enfrentados para o êxito das ações com enfoques em prevenção, atendimento médico e apoio social. Aborda, ainda, o papel dos movimentos de solidariedade que têm aflorado em meio à crise. Para Pereira, “no presente, isto indica um ponto de partida muito importante.” Confira a entrevista a seguir.

Plurale. Qual a importância da iniciativa das universidades nas favelas do Rio no cenário de pandemia?

Vantuil Pereira. “Em primeiro lugar, a iniciativa aproxima a universidade das favelas. Embora isso já seja uma realidade, desde antes da pandemia, esse movimento coloca-nos antenados com os problemas da sociedade, em especial, com a população vulnerável do Rio de Janeiro.”

Plurale. O que se espera alcançar com essa ação conjunta?

Vantuil Pereira. “Esperamos contribuir com o enfrentamento da pandemia apresentando um plano ou uma iniciativa para minorar os efeitos dessa devastadora doença. É preciso ressaltar que, o referido plano foi elaborado conjuntamente com lideranças comunitárias. Isto é, temos clareza dos seus limites e potencialidades, pois são os moradores que conhecem as suas carências, além dos seus problemas e desafios.”

Plurale. Quais são as principais preocupações dos pesquisadores envolvidos e os principais obstáculos enfrentados nas favelas do Rio, em geral?

Vantuil Pereira. “O principal obstáculo diz respeito à falta de recursos e à falta de coordenação conjunta dos diversos níveis estatais. A pandemia escancarou as deficiências do nosso sistema de saúde que, há muito, vinha sendo desmontado. Por outro lado, a falta de informações precisas para o planejamento de políticas públicas é outro obstáculo a ser superado.”

Plurale. E no caso da Rocinha, em particular?

Vantuil Pereira. “No caso da Rocinha, o problema se traduz na própria dificuldade que os moradores, vinham encontrando, para uma aproximação efetiva com as autoridades municipais. São questões que podem ser superadas com muito diálogo. A questão que nos preocupa é que o tempo está correndo e a doença se alastra.”

Plurale. É possível perceber alguma tendência para as favelas do Rio no pós-pandemia?

Vantuil Pereira. “Penso que estamos com um quadro muito incerto, ainda, para fazermos previsões a este respeito. Em primeiro lugar, porque as previsões para uma vacina ainda são duvidosas, em curto prazo. Em segundo lugar, porque tudo vai depender da nossa capacidade de ação no presente.”

Plurale. E como avaliar essa capacidade de ação?

Vantuil Pereira. “Infelizmente, no momento em que conversamos, as previsões dão conta de que nos tornaremos o epicentro da pandemia. Muito em função da incapacidade operacional dos agentes públicos de saúde, sobretudo, se observarmos as discussões em torno da reabertura do comércio, do retorno de atividades esportivas etc. Tudo isso transmite um sentimento de que estamos numa normalidade. O que não é verdade. Estamos vivendo uma tragédia que não tem comparação na história recente.”

Plurale. Há algum aspecto positivo a considerar em meio à pandemia?

Vantuil Pereira. “Creio que a sociedade organizada esteja fazendo um esforço. Veja, por exemplo, as inúmeras iniciativas de doação de cestas básicas, projetos em curso desenvolvido pelas universidades, ONGs e tantas outras ações. Não sei se isto terá uma repercussão no futuro. O que se sabe é que, no presente, isto indica um ponto de partida muito importante.”

(Plurale/Envolverde)