ODS 15

Ecologia das plantas sagradas

𝗦𝗮𝗺𝘆𝗿𝗮 𝗖𝗿𝗲𝘀𝗽𝗼 - 28 de abril, é o Dia Nacional da Caatinga, o bioma predominante no nordeste brasileiro. Apesar do clima típico do semi-árido, e das secas severas, o bioma apresenta uma rica biodiversidade, exemplo de resiliência.

Ecologia das plantas sagradas

por Samyra Crespo –

Vou explorar hoje um tema que poderia ser encaixado no que entendemos por ‘deep ecology’, isto é um entendimento mais profundo do significado da natureza e de suas potencialidades, inclusive as de cura.

Vamos falar da ‘Jurema sagrada‘.

Para começar: trata-se de uma árvore.

Ainda que seja bastante conhecida no Nordeste, não existe consenso sobre sua adequada classificação. É com certeza uma das espécies da planta conhecida como Acacia (Acacia Jurema Mart.). Popularmente, é a Jurema.

A tradição mágico-religiosa nordestina que usa os ‘poderes’ da Jurema é um caleidoscópio de influências: originária do xamanismo indígena, passa pelas religiões africanas, pelo catolicismo popular, e até mesmo pelo esoterismo moderno.

Nesse esoterismo, identificamos um uso psicodélico semelhante, de plantas como o cipó no Daime, na seita União Vegetal e também no largo uso da aihuasca nos Andes.

Note-se que as Acácias sempre foram consideradas plantas sagradas por diferentes povos e culturas de todo o mundo.

Acacia Nilotica

Os Egípcios e Hebreus veneravam a “Acacia nilotica” (Sant, Shittim, Senneh), os Hindus a “Acacia suma” (Sami), os Árabes a “Acacia arabica” (Al-uzzah), os Incas e outros povos indígenas da América do sul veneravam a “Acacia cebil“(vilca, Huillca, Cebil), os nativos do Orinoco a “Acacia niopo” (Yopo) e os índios do nordeste brasileiro tinham na “Acacia jurema” (Jurema, Jerema, Calumbi) a sua árvore sagrada.

Acacia Suma

Esta árvore tipicamente nordestina, era venerada pelos índios potiguares e tabajaras, da Paraíba, muitos séculos antes da descoberta Brasil.

Acacua Jurema

Em Pernambuco, existe um município cujo nome é Jurema devido a grande quantidade destas árvores que ali se encontra. A jurema (mimosa hostilis), depois de crescida, é uma frondosa árvore que vive mais de 200 anos.

Todas as partes dessa árvore são aproveitadas: a raiz, a casca, as folhas e as sementes, utilizadas em banhos de limpeza, infusões, unguentos, bebidas e para outros fins ritualísticos.

Os devotos iniciados nos rituais do culto da ‘Jurema Sagrada’ são chamados de “Juremeiros”. Foi na cidade de Alhandra, município a poucos quilômetros de João Pessoa, que esse culto, na forma do Catimbó alcançou fama.

Estudos recentes atestam que a ‘Jurema sagrada’ é remanescente da tradição religiosa dos índios que habitavam o litoral da Paraíba, Rio Grande do Norte e no Sertão de Pernambuco e dos seus pajés, grandes conhecedores dos mistérios da ecologia sagrada das plantas e dos animais.

Depois da chegada dos africanos no Brasil, quando estes fugiam dos engenhos onde estavam escravizados, encontravam abrigo nas aldeias indígenas, e através desse contato, os africanos trocavam o que tinham de conhecimento religioso em comum com os índios. Por isso até hoje, os grandes mestres juremeiros conhecidos, são sempre mestiços com sangue índio e negro. Os africanos contribuíram com o seu conhecimento sobre o culto dos mortos ( egun ) e das divindades da natureza os orixás, voduns e inkices.

Os índios, estes contribuíram com o conhecimento de invocações dos espíritos de antigos pajés e dos trabalhos realizados com os encantados das matas e dos rios. Daí a jurema se compor de duas grandes linhas de trabalho: a linha dos mestres de jurema e a linha dos encantados .

Na literatura o suco da jurema aparece no Romance Iracema de José de Alencar, (1829 – 1877), publicado em 1865. É descrito como bebida de cor esverdeada, que deixavam os índios em estado de transe, propiciando-lhes sonhos agradáveis. Iracema era filha do pajé, guardiã do suco da jurema. Por isso deveria manter-se virgem, mas sua vida muda com a chegada de Martim, um homem branco, que chegara como convidado à sua casa.

O romance ocorre no interior e litoral nordestino (terra do autor) e explora a rivalidade tribal entre os índios tabajaras (da tribo de Iracema) e os pitiguaras (referência aos potiguaras do qual ainda existem remanescentes), que disputavam territórios litoral e adversários dos tabajaras.

O autor apesar de descrever alguns costumes indígenas, ameniza a violência do processo de aculturação descrito além de Iracema nos seus outros romances indianistas “Ubirajara” (1870), e “O Guarani” (1857) e não fornece um relato comparável as descrições etnográficas. Contudo, diante da escassez de fontes sobre os índios do nordeste do Brasil, é uma importante referência para reconstituição dos rituais e mitos destruídos pela aculturação juntamente com seu romance regionalista “O Sertanejo” (1875).

Também o romance brasileiro “Macunaíma” escrito por Mário de Andrade ( poeta e romancista modernista) faz referência a essa planta para fins ritualísticos. O personagem principal homônimo ao se caracterizar de mulher para enganar Venceslau Pietro Petra, “virou uma francesa tão linda que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pinhão paraguaio para evitar quebranto.”

Como se pode ver, a ‘Jurema Sagrada’ é uma tradição cultural que ajuda a conservar as Acácias e que cataloga importantes usos dessa planta na medicina natural ou nas práticas da fitoterapia atual.

Interessante não?

Samyra Crespo é ambientalista, coordenou a série de pesquisas nacionais intitulada “O que o Brasileiro pensa do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável” (1992-2012). Foi uma das coordenadoras do Documento Temático Cidades Sustentáveis da Agenda 21 Brasileira, 2002. Pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins/RJ. Ex-Gestora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

* referências:
– Revista África e Africanidades, vol XII, fasc. 32
– livro ‘A Ciência da Jurema’, do jornalista Marcelo Leite, editora Fósforo.

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