Por Luiza Franco, BBC Brasil –
A ave saíra-sapucaia vive a maior parte do tempo no sul do país, mas costuma migrar para o sudeste no inverno.
Um dos lugares onde pode ser vista nessa época do ano é na floresta do Camboatá, na zona oeste do Rio de Janeiro, uma espécie de ilha de vegetação no subúrbio da cidade.
Mas nos próximos anos, é possível que a saíra-sapucaia e outros animais não tenham mais esse espaço para invernar.
Isso porque a floresta do Camboatá pode ser derrubada para dar lugar a um autódromo.
A ideia da construção de um novo circuito no terreno da floresta vem desde pelo menos 2011, dizem membros do Movimento SOS Floresta do Camboatá, organização criada naquele ano em reação aos primeiros sinais de interesse das autoridades em tomar o espaço.
O projeto de construção ganhou impulso no ano passado, e uniu as três esferas de governo. Em maio de 2019, o presidente Jair Bolsonaro assinou, junto com o governador Wilson Witzel e o prefeito Marcelo Crivella, um termo de compromisso para a construção, com o objetivo de levar a Fórmula 1 de São Paulo para o Rio de Janeiro.
Naquele mesmo mês, o grupo de empresas Rio Motorsports venceu licitação, na qual foi o único concorrente, para executar o projeto, orçado em R$ 697 milhões, e operar o circuito por 35 anos.
Nos últimos meses, além do Movimento SOS Floresta do Camboatá, o Ministério Público do Estado do Rio também vem fazendo objeções à obra. Por meio de decisões judiciais, foi freada a realização de uma audiência pública sobre a construção, etapa necessária para apresentação de estudo de impacto ambiental e para a liberação dos trabalhos.
Essa situação foi revertida na quinta-feira pelo ministro Dias Toffoli, que, em seu mandato na Presidência do Supremo Tribunal Federal, fez gestos de aproximação com Bolsonaro.
Toffoli autorizou a realização da audiência virtual no dia 7 de agosto, o que na prática abre caminho para que a floresta seja derrubada e o autódromo, construído.
O MP recorreu, e agora o STF precisa se posicionar. O ministro Toffoli analisará o recurso e poderá fazer uma retratação. Caso contrário, deverá submeter o recurso ao plenário do STF. Mas é possível que a análise do recurso aconteça depois da data da audiência.
Por outro lado, uma ação que questiona a realização da audiência pública em formato exclusivamente virtual continua tramitando na Justiça do Rio de Janeiro e, caso seja considerada procedente, pode anular a audiência virtual.
O que dizem aqueles que querem construir o autódromo?
A Rio Motorsports não foi encontrada para comentar as objeções feitas pela sociedade civil e pelo Ministério Público. No entanto, é possível reconstituir seus posicionamentos a partir de notas divulgadas no passado.
Em uma deles, enviada à imprensa num momento em que a audiência ainda estava suspensa, disse que é vítima de perseguição do MP. Diz ainda que, como forma de compensar o desmatamento, vai criar um horto florestal e plantar mais de 700 mil árvores. Afirma também que o autódromo vai gerar novos postos de trabalho e arrecadação de imposto e que o impacto econômico seria de quase 30 bilhões de dólares. Em entrevista ao portal Terra, no entanto, o diretor executivo da Rio Motorsports, JR Pereira, falou em “quase 30 bilhões de reais”, mas não detalhou como chegou a esse valor.
O gabinete do governador do Rio, Wilson Witzel, não respondeu a pedido de posicionamento da reportagem. A Prefeitura tampouco respondeu perguntas enviadas por e-mail, enviou apenas uma nota que relatava o sucesso na decisão do ministro Dias Toffoli. A presidência tampouco se manifestou.
O Instituto Estadual do Ambiente (Inea), órgão responsável pela aprovação do estudo de impacto ambiental, disse que só se manifestará quando o parecer técnico for concluído.
A BBC News Brasil procurou a Presidência da República para comentar a questão, mas não houve resposta.
O que é a floresta do Camboatá?
Vista de cima, a floresta do Camboatá é uma mancha verde numa parte predominantemente cinzenta da cidade, no bairro de Deodoro, no subúrbio. É o único trecho de grande porte que resta de Mata Atlântica em área plana no Rio de Janeiro, dizem ambientalistas.
Fica na beira da avenida Brasil, uma das principais vias de acesso ao Rio de Janeiro. Há anos ela é preservada pelo Exército, que tem uma série de instalações militares na vizinhança. Ambientalistas que estiveram lá dizem que algumas partes estão degradadas, mas podem ser recuperadas.
Ela ocupa cerca de 194 hectares, um espaço equivalente a quase 200 campos de futebol e fica entre três grandes áreas montanhosas do Rio, os maciços da Tijuca, da Pedra Branca e Mendanha Gericinó.
O Camboatá abriga animais em extinção, com o jacaré-de-papo-amarelo; animais que migram de outras partes do país, como a ave saíra-sapucaia; e, por causa de sua localização, é uma espécie de porto para vários outros que transitam entre os maciços ao redor.
“É um local de parada, que a fauna usa como ponto de pouso para transitar entre outros fragmentos de floresta. Com o avanço da cidade, florestas de terras baixas foram quase todas suprimidas. A floresta do Camboatá pelo menos continua fazendo esse papel de ponto de ligação”, diz Haroldo C. Lima, pesquisador associado do Jardim Botânico do Rio e membro do Movimento SOS Floresta do Camboatá.
“Algumas espécies podem transitar direto entre uma floresta e outra, mas outras precisam desses pontos de parada”, diz ele. “No caso da saíra-sapucaia, o desmatamento da floresta pode representar ameaça para a espécie. Ela faz esse movimento migratório todo ano em busca de recursos alimentares”, diz o ornitólogo Guilherme Sena.
Esse processo de ir e vir dos animais acaba estimulando a diversidade das florestas, diz Lima, porque os pássaros levam e trazem consigo sementes de outros lugares.
A floresta também presta serviços aos seres humanos, segundo Lima. “Ela tem uma espécie de lago que tem uma capacidade de armazenamento de água muito grande. É como uma esponja. Quando chove, a água do entorno flui para lá e impede que aquela região, que é toda coberta de cimento, fique inundada. Já inunda e ficará pior”, diz o pesquisador.
“Outro serviço importante é amenizar o clima da região. É só você sair do entorno da floresta e ir para bairros vizinhos como Bangu que sentirá a diferença de temperatura. Então tem um papel de qualidade de vida das pessoas que moram no entorno”, acrescenta.
“Aquela área é única e singular e por isso tem que ser deixada para o futuro da cidade. Ninguém é contra o autódromo, mas ele não vai mudar a economia de fundo do poço em que está o Estado”, diz ele.
O movimento sugere que o autódromo seja construído numa região vizinha à floresta. “Se construíssem em áreas ao lado da floresta poderiam usá-la como ativo ambiental, para negócios verdes, sustentáveis, envolver a população, fazer hortas, reciclagem de lixo, produção de mudas para reflorestamento de outros pontos da cidade, como a Quinta da Boa Vista, um parque de múltiplo uso, numa área em que não tem nada disso. Por que nossos parques têm que ser só na zona sul do Rio? Não tem um Aterro do Flamengo na zona norte e na zona oeste.”
‘Estudo tendencioso’
O Movimento SOS Floresta do Camboatá questiona em diversas frentes o estudo de impacto ambiental apresentado pela empresa que pretende construir o autódromo.
“O estudo é bom, mas tem problemas. A empresa que o elaborou usou dados de forma tendenciosa para poder dizer que ali é o lugar em que o autódromo causará menos impacto ambiental, o que é uma conclusão quase ridícula. A área do Camboatá é a que tem a maior cobertura florestal entre as opções”, diz Lima.
O pesquisador diz ainda que o estudo não inclui todas as espécies ameaçadas de extinção – há cerca de 20, diz ele, mas o estudo só reconhece 11. “E tem outro problema, se você desmata o principal fragmento de florestas baixas no Rio e tira de lá as espécies ameaçadas de extinção, vai transferir para onde se não há vegetação semelhante no município do Rio de Janeiro?”
A floresta também tem o potencial para ser, como diz Lima, uma “fábrica de sementes” – há várias espécies que desapareceram de outros lugares, mas que ainda existem lá.
“É de fundamental importância para mudas. O projeto do autódromo pretende compensar (o desmatamento) com reflorestamento, mas de onde vão produzir as espécies locais, se vão derrubar as espécies que podem oferecer sementes?”, questiona ele.
O que diz o Ministério Público?
O Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente do MP questiona o projeto em si. Diz que o desmatamento não é cabível e que “o empreendedor não comprovou devidamente a inexistência de alternativa locacional para o projeto, na forma determinada pela Lei 11.428/2006 (Lei da Mata Atlântica) e pela Resolução Conama 01/86”.
Além disso, diz que o estudo de impacto ambiental tem inconsistências que “não permitem o devido dimensionamento dos impactos ambientais do empreendimento”.
O MP também diz que o projeto do autódromo traz muitas consequências socioambientais, e por isso a discussão pública sobre ele não pode ser apressada, como está sendo feito, aos olhos do MP, e realizada apenas online.
O autódromo, diz o órgão, em nota, “é empreendimento sensível e complexo, potencialmente gerador de significativo impacto ambiental, que acarreta supressão de floresta em estágio avançado/médio de regeneração do bioma da Mata Atlântica” e que “a complexidade de que se reveste o processo de licenciamento do empreendimento, com suas possíveis repercussões socioambientais irreversíveis, inclusive no incremento do processo de mudanças climáticas e de enchentes na área, desaconselha que seja atribuído andamento açodado ao trâmite, entre outros pontos”.
O MP argumenta que a forma como a audiência seria feita fere as normas do processo de licenciamento ambiental, que exigem a participação de cidadãos interessados.
O MP pede que, caso a audiência venha a ser feita, ela seja declarada nula, por ter acontecido durante a pandemia, e solicita que outra audiência seja marcada quando a situação de saúde pública voltar ao normal.
O MP diz que, na mesma nota, que “o uso de meios eletrônicos deve se dar de maneira complementar aos meios tradicionais, como forma de ampliar o acesso ao debate público, mas nunca de modo a restringi-lo (o que certamente ocorreria no caso em questão, e no período atual) e que “não é adequado que a audiência ocorra no momento de pandemia, não permitindo o mais amplo acesso à informação e debate popular acerca do empreendimento e de seus impactos, uma vez que a sociedade encontra-se com a sua capacidade de articulação e mobilização nitidamente prejudicada”.
O órgão também cita uma resolução que “suspende os prazos de cumprimento de obrigações administrativas ambientais, incluindo as previstas em Termos de Ajustamento de Conduta e outros ajustes celebrados no âmbito da Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade (SEAS) e do INEA, em decorrência da situação de emergência atual”, como diz seu texto.
O MP pede, por esses motivos, que a decisão monocrática de Toffoli, concedida após um recurso da Prefeitura do Rio, seja reexaminada pelo colegiado, ou seja, por um grupo de ministros.
Em sua decisão da última quinta-feira, o ministro Dias Toffoli disse que “não parece admissível” impedir o prosseguimento do processo por causa da audiência virtual e diz que acha que não cabe ao STF decidir questões administrativas locais.
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