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Estados Unidos e Grã-Bretanha acusados de ignorar abusos na Etiópia

A Etiópia é o país da África que mais recursos investe em hidrelétricas. Na foto, a represa do Grande Renascimento, na região etíope de Benishangui-Gumuz. Foto: William Davison/IPS
A Etiópia é o país da África que mais recursos investe em hidrelétricas. Na foto, a represa do Grande Renascimento, na região etíope de Benishangui-Gumuz. Foto: William Davison/IPS

 

Washington, Estados Unidos, 22/7/2013 – Agências de ajuda externa dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha teriam ignorado e minimizado testemunhos fidedignos de comunidades étnicas da Etiópia, que acusam seu governo de expulsá-las e violar seus direitos em nome do desenvolvimento. A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e o britânico Departamento de Desenvolvimento Internacional (DfID) enviaram múltiplas missões de investigação às comunidades afetadas, mas uma e outra vez consideraram que as acusações eram infundadas.

Porém, segundo os registros de algumas reuniões mantidas por uma das missões, divulgados no dia 17 pelo Instituto Oakland, dos Estados Unidos, funcionários das duas agências receberam depoimentos inequívocos de abusos cometidos pelo governo da Etiópia. “As transcrições dos registros, divulgados por este informe, não deixam dúvidas de que as agências doadoras receberam informação muito crível e de primeira mão sobre graves violações de direitos humanos, e escolheram ignorá-la”, escreveu o acadêmico norte-americano Will Hurd, autor de um dos novos documentos.

Hurd trabalha para uma organização não governamental e foi intérprete em reuniões mantidas em janeiro de 2012 entre funcionários e comunidades de Omo Sul, na região etíope das Nações, Nacionalidades e Povos do Sul. “Segundo um alto funcionário da Usaid, um membro da agência que integrou a visita de campo informou que os relatos de abusos dos direitos humanos ouvidos em Omo foram de ‘terceira mão’. Mas nas transcrições fica claro que muitos foram de primeira mão”, contou.

As gravações aconteceram em janeiro de 2012 durante uma missão de investigação no vale da zona baixa do rio Omo, no sudeste da Etiópia. “As transcrições mostram que as delegações ouviram bastante”, afirmou Anuradha Mittal, diretor-executivo do Instituto Oakland, à IPS. “Os governos doadores devem se responsabilizar por sua falta de reação e rever criticamente suas questionáveis políticas de desenvolvimento”, destacou.

Nem a Usaid nem o DfID divulgaram algum informe oficial sobre a missão de janeiro de 2012 nem sobre a seguinte, em novembro, mas a IPS teve acesso a uma cópia vazada de um relatório de quatro páginas sobre as primeiras reuniões (nada vazou da segunda). O documento diz que os integrantes da missão receberam acusações de “violação de mulheres e de um menino”, “uso da força e intimidação com presença do exército” e “ameaças do governo do tipo: venda seu gado ou o mataremos”, entre outras denúncias.

O informe conclui afirmando que, “devido a esses incidentes, os mursis e os bodis, em especial, declararam que viviam com medo, recorriam a outras fontes de alimento ou passavam fome. Utilizou-se a expressão ‘esperando para morrer’. Embora estas acusações sejam extremamente graves, a missão não pôde confirmá-las”. A última frase estava em negrito e sublinhada, e foi recomendado realizar um acompanhamento.

Segundo o Instituto Oakland, a Usaid e o DfID enviaram essa conclusão ao Grupo de Assistência ao Desenvolvimento, que reúne as maiores agências de desenvolvimento e ajuda do mundo, entre elas o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. Em março, o Painel de Inspeção do Banco Mundial citou evidências de que a instituição poderia estar apoiando programas para formar assentamentos e solicitou uma investigação a respeito, mas até agora Adis Abeba se nega a cooperar.

Nem a Usaid nem o DfID responderam às consultas da IPS para este artigo.

Nas últimas duas décadas, a Etiópia emergiu como uma potência econômica em expansão, o que levou os doadores internacionais a enchê-la de elogios e dinheiro, com a esperança de contribuir para conter o atribulado Chifre da África e incentivar o que se denominou “renascimento africano”. Nos últimos anos, o apoio se traduziu em cerca de US$ 3,5 bilhões ao ano em vários tipos de ajuda, que representam mais da metade do orçamento nacional.

No entanto, a ajuda fez com que o histórico líder etíope, agora falecido, Meles Zenawi, impulsionasse vários planos agressivos de desenvolvimento nacional e de grande alcance. As iniciativas incluíam controvertidas usinas hidrelétricas e vastas plantações. Isso gerou programas de esvaziamento de grandes extensões de terreno, e com isso cerca de 260 mil pessoas correm o risco de perder suas terras e serem reassentadas à força em outras áreas, em um processo de criação de assentamentos, chamado em inglês de “villagisation”.

Meles morreu no ano passado, mas o novo primeiro-ministro, Hailemariam Desalegn, deixou claro que seu governo manteria os programas de desenvolvimento. “O governo da Etiópia vem e tira nossas terras com violência e viola nossas mulheres”, denunciou um homem mursi nas gravações divulgadas pelo Instituto Oakland. Outro alerta que “só esperamos a morte. O governo trabalha esta terra”. Segundo o relato de Hurd, essa reunião ficou bastante tensa.

Os funcionários norte-americanos e britânicos presentes quiseram se concentrar em questões de desenvolvimento: por exemplo, quais serviços as comunidades locais queriam pedir aos governos. Mas os representantes mursis continuaram levando a conversa para o lado das violações que sofriam nas mãos das autoridades.

“Obviamente, concordamos que os golpes, as violações, a falta de consultas e de indenizações adequadas são inaceitáveis”, diz em determinado momento um representante do DfID, ao que parece sensibilizado pelo que ouvia. “Estou totalmente de acordo e direi seriamente ao governo que essa não é a forma de fazer as coisas. Simplesmente está mal. Simplesmente está mal”, acrescentou, ressaltando que, “obviamente, estamos de acordo e é preocupante ouvir que isso acontece”.

Não está claro com quanta firmeza as delegações britânica e norte-americana apresentaram o assunto ao governo da Etiópia, mas a conclusão final das duas agências, de que essas acusações são impossíveis de comprovar, segue guiando sua política oficial. “A evidência mostra claramente que essas agências forneceram de forma direta e indireta fundos a um governo que viola os direitos humanos em suas políticas de desenvolvimento”, disse Mittal à IPS. “O conceito de ‘estado de renascimento’ significa um enorme custo, que recai especialmente sobre as comunidades indígenas, e a Usaid e o DfID são responsáveis pela promoção dessas políticas”, afirmou. Envolverde/IPS