A América Latina e a África subsaariana são as duas regiões do mundo cujos recursos materiais, energéticos e bióticos superam o montante necessário de terra e água para a produção do que consomem e para a absorção dos resíduos gerados por sua oferta de bens e serviços. Ou, para usar os termos dos especialistas, sua biocapacidade é maior que sua pegada ecológica. Esse trunfo tem sido um vetor decisivo no crescimento recente dos dois continentes. No entanto, a pressão sobre os ecossistemas é tão grande que, se não houver mudança de rumo, a relação entre pegada ecológica e biocapacidade fatalmente vai se inverter.
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e a Rede Mercosul (Rede Acadêmica de pesquisas econômicas para a América Latina) acabam de publicar os resultados de um vasto levantamento sobre o grau de eficiência com que se usam os recursos dos quais depende a reprodução das sociedades latino-americanas (Eficiencia en el uso de los recursos en América Latina, disponível em pnuma.org). Da Rio-92 para cá, houve avanços importantes nas fontes renováveis de energia (sobretudo no Paraguai e no Brasil com Itaipu e o etanol), no surgimento de planejamento socioambiental em vários níveis, na redução dos rejeitos orgânicos na água e, desde meados da última década, na redução do desmatamento. Ainda assim, o quadro geral é preocupante.
O ponto de partida do relatório é o processo de primarização da economia latino-americana. Em plena era do conhecimento, os bens primários, que correspondiam a 42% das exportações latino-americanas em 1998, atingiram 53% do total, em 2008. No Brasil, o aumento proporcional foi ainda maior, passando de 20% a 35%, no período. Uma das mais importantes consequências desse processo é que o acúmulo de divisas decorrente das exportações contribui para valorizar as moedas locais, barateia as importações e, por aí, desestimula o avanço da indústria. Primarização e desindustrialização caminham juntas.
Mas a primarização não compromete o conjunto da indústria e, sim, prioritariamente, aquelas com maior conteúdo de inteligência e inovação. Cresce, na estrutura industrial da América Latina, a proporção dos produtos com alto potencial contaminante, um parâmetro internacional aplicado no Brasil pela equipe liderada por Carlos Eduardo Young, do Ipea, um dos autores do relatório do Pnuma.
A participação desse tipo de indústria durante os anos 1990 estava em queda. Na última década, porém, quase 40% da indústria do Brasil e da Argentina era de alto potencial contaminante. Entre 1998 e 2007, esses setores cresceram nada menos que 230% na América Latina, ao mesmo tempo que a indústria como um todo sofre um retrocesso generalizado.
Outra dimensão assustadora da inserção global da economia latino-americana é revelada quando se comparam as mudanças líquidas nas áreas florestais pelo mundo. Enquanto na Europa, na América do Norte e na Ásia (aí somente na última década) as áreas florestais se ampliam – muitas vezes por meio de plantações arbóreas homogêneas, que reduzem a biodiversidade, é verdade –, na África e na América Latina elas continuam encolhendo. Apesar da redução do ritmo do desmatamento na última década, a África e a América Latina são hoje o grande reservatório de florestas em que a economia da destruição da natureza – e não a do conhecimento – continua esmagadoramente dominante.
Mas não é só por sua inserção internacional que a América Latina se distancia do desenvolvimento sustentável. É também nos padrões de consumo doméstico. No México, por exemplo, aumenta de maneira constante o fluxo de materiais dos quais depende a vida econômica (esses dados não existem para o Brasil).
Considerando-se apenas os combustíveis fósseis, os minerais, os materiais de construção e a biomassa, o consumo per capita dos mexicanos vai de 7,4 para 11,2 toneladas anuais entre 1970 e 2003. Nesse total, a importância da biomassa é constante, e a dos materiais não bióticos, crescente, o que amplia os impactos da economia sobre os ecossistemas.
A América Latina está cada vez mais distante da tão almejada desmaterialização da vida econômica, que é o traço fundamental da era da informação e do conhecimento. A transição para a economia verde supõe uma nova divisão internacional, não do trabalho, mas do próprio uso dos ecossistemas. Quando surgir a macroeconomia do desenvolvimento sustentável, um de seus pilares consistirá em sinalizar para a sociedade global que é apenas aparente a abundância de recursos concentrados em determinadas regiões e que o sentido social de seu uso deve ser mais importante do que a renda que, durante algum tempo, esses recursos são capazes de gerar.
* Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de economia da FEA-USP, do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNP e da Fapesp. Site: www.abramovay.pro.br; twitter: @abramovay; e-mail: [email protected].
** Publicado originalmente no site Mercado Ético.