Fundo Clima: poderá fazer diferença?

Em que ou como o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) se tornará relevante no financiamento de medidas de mitigação das mudanças de clima e de adaptação às suas consequências? 

Essa questão reverberou na última reunião do Comitê Gestor desse Fundo, criado pela lei 12114, de 2009, e que iniciou suas atividades em 2011. E a questão foi trazida à tona por representantes do Ministério da Fazenda, Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) durante a última reunião plenária do Comitê, no final de novembro: tratava-se de um recado “informal” de autoridades monetárias por desconhecimento eventual dos objetivos desse Fundo ou questionamento de sua relevância na comparação com outros instrumentos de investimentos públicos para devolver a proposta de reduzir (eventualmente a zero) ou subsidiar os juros de 4,5% ao ano cobrados pelo BNDES, quando da alocação reembolsável pelo Banco de recursos desse fundo em projetos que contribuam para a mitigação de emissões de gases de efeito estufa.

O dilema não é pequeno: poucas propostas se efetivaram para tomar empréstimos dos R$ 500 milhões (200 em 2011 e 300 em 2012) do Tesouro Nacional disponibilizados pelo Fundo via BNDES. Além de questões burocráticas e legais que retardaram melhor performance do Fundo nas linhas de investimentos reembolsáveis, a queixa do BNDES é que esses recursos são pouco atrativos para o setor privado quando comparado com aqueles alocados pelo Governo para obras e equipamentos em infraestrutura, de interesse do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Nesses, os juros são de 2,5% ao ano. Resultado, por exemplo, é que, para um permissionário de transporte público urbano, fica mais barato renovar a frota com ônibus de motores a diesel do que buscar o empréstimo mais caro para veículos com tecnologia que emita menos gases de efeito estufa.

Essa questão foi objeto de atenção e debates pelos integrantes do Comitê do Fundo Clima ao longo de 2012. De um lado, a expectativa de que esse Fundo pudesse alavancar iniciativas consistentes com programas do Plano Nacional de Mudanças de Clima em áreas e linhas escolhidas como prioritárias em 2011. Na reunião inaugural de 2012, em fevereiro, o Comitê aprovou o Plano Anual de Aplicação de Recursos (PAAR) (no qual ficam definidos montantes e linhas de investimentos reembolsáveis e não reembolsáveis), e na ocasião eu havia “solicitado informações sobre a desproporcionalidade orçamentária entre os recursos reembolsáveis e não reembolsáveis, pois, no primeiro caso, os recursos quase dobraram e no segundo, dois diminuíram de patamar de 2011 a 2012” (reembolsáveis de 200 a 300 milhões de reais; não reembolsáveis de 29 a 16 milhões, aproximadamente). Fiquei sem obter resposta!

Na segunda reunião anual, em maio, o MMA propôs a criação de um grupo técnico para apresentar em 90 dias sugestões mais detalhadas em que áreas e tipos de projetos poderiam ser alocados os recursos reembolsáveis, cuja expectativa, então, seria de crescimento gradativo (os recursos do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima – FNMC, de natureza contábil, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, segundo a lei 12114, são oriundos de parte da distribuição dos “royalties” do petróleo que caberia a esse Ministério). Aproveitei para sugerir a criação de um grupo equivalente para lidar com os desafios pertinentes ao montante e alocação de recursos não reembolsáveis, pois com esses, penso que o Fundo poderá eventualmente preencher lacunas e fazer diferença.

Apesar de alguma resistência, inclusive do MMA, os dois grupos foram aprovados. Na mesma reunião de maio, o Comitê havia debatido a necessidade de elaborar proposta de novas taxas de juros para as linhas de ação reembolsáveis e encaminhá-las ao Conselho Monetário Nacional (que, como mencionado acima, não havia acatado isso, pelo menos até novembro passado).

Enquanto o grupo de recursos reembolsáveis teve seu funcionamento agilizado pelo MMA, iniciando seus trabalhos logo após a Rio+20, o grupo para recursos não reembolsáveis só foi instalado em meados de novembro, tendo realizado três encontros até o início de janeiro de 2013. Há previsão de uma última reunião e conclusão das recomendações ainda antes do Carnaval e do primeiro encontro do Comitê Gestor de 2013 (em fevereiro), pois então se tomará a decisão sobre o PAAR para esse ano (a partir dos montantes já previstos pelo orçamento governamental).

O grupo técnico para tratar de recursos reembolsáveis desenvolveu propostas de novas linhas de ação e ajuste de linhas já existentes, tendo trabalhado com base em quatro subgrupos para cidades sustentáveis, gestão de carbono, economia florestal e ajustes gerais das prioridades existentes. Suas recomendações foram apresentadas ao Comitê na reunião final de novembro de 2012. Para o grupo técnico de não reembolsáveis, indicamos dois representantes do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS): Silvio Sant’anna, da Fundação Esquel Brasil, e Rubens Gomes, do Grupo de Trabalho Amazônico, mas eu, na condição de membro do Comitê, tenho participado de suas reuniões.

Antes de prosseguir, é bom lembrar as linhas existentes para aplicação de recursos não reembolsáveis no PAAR 2012, segundo o MMA:

Fundo Clima – Plano Anual de Aplicação de Recursos – 2012 – Recursos Não Reembolsáveis – Fevereiro de 2012

 

Desafios

Dos debates realizados no grupo técnico de não reembolsáveis, ficaram claros cinco desafios interconectados:

1. O montante efetivamente diminuto (porcentualmente e em valor absoluto) dos recursos disponibilizados para investimento não reembolsável (doações), para o qual concorrem órgãos de governo, em todas as esferas, universidades e institutos de pesquisa e diversos segmentos e grupos da sociedade civil, de trabalhadores a associações comunitárias e organizações do campo socioambiental.

Esse montante é pequeno, seja quando comparado ao volume total de recursos do Fundo Clima e quando analisado à luz de outros mecanismos, nacionais e estrangeiros, que oferecem apoio não reembolsável para atividades de mitigação e/ou adaptação às mudanças climáticas no Brasil.

2. Escopo das linhas e áreas temáticas e das regiões geográficas consideradas prioritárias para aplicação dos recursos não reembolsáveis.

Óbvio que muitas iniciativas de superação da pobreza, desenvolvimento comunitário por meio do uso sustentável de ambientes rurais, de apoio à gestão de resíduos urbanos (inclusive de redução na geração e reciclagem), de energia renovável nas habitações e transporte, de manejo florestal e promoção de sistemas agroflorestais por comunidades rurais, etc., tem vínculo com mitigação de mudanças de clima. Muitas dessas iniciativas já buscam recursos em outras fontes. Também se percebe, inclusive no Fundo Clima, a assimetria na demanda e na aplicação de recursos: boa parte para órgãos governamentais e instituições de pesquisa, sendo relativamente baixo o acesso de organizações não governamentais (em geral, só as organizações mais estruturadas logram cobrir custos transacionais e preencher requisitos para acessar recursos públicos de monta).

Que diferença poderá fazer o Fundo Clima? Como criar sinergia com esses outros mecanismos, especialmente governamentais (exemplo: Fundo Nacional do Meio Ambiente, Fundos constitucionais regionais, etc.) e até com o Fundo Amazônia? Até o momento, uma região geográfica ganhou prioridade, por razões óbvias e justas: o semiárido, para ações de adaptação.

Poderia o Fundo Clima, tendo volume muito maior de recursos não reembolsáveis, ampliar investimentos em outras regiões, seja para ações efetivas de adaptação ou de incremento de capacidades adaptativas às mudanças climáticas (ex:periferias metropolitanas ou áreas urbanas mais vulneráveis)? Como? Qual a demanda existente?

3. Fomento à demanda, assentado em conhecimento claro sobre necessidades atuais e futuras, bem como sobre potenciais demandantes de recursos não reembolsáveis.

É incipiente, se existente, uma noção clara no Brasil, a meu ver, sobre qual seria a demanda de investimentos não reembolsáveis, no largo prazo (digamos oito a dez anos, até 2020 ou pouco além). Sabe-se que tais investimentos são importantes para medidas de adaptação, pesquisas sobre vulnerabilidade e riscos associados às mudanças climáticas, agravadas pela degradação ambiental e uso inadequado dos solos, bem como para a difusão de certas tecnologias que o mercado ainda não incorporou à sua lógica (de lucro imediato). Ou seja, pouco provável que alguém tomará empréstimo com juros de dois ou mais pontos percentuais anuais para pesquisas ou medidas de adaptação, sobretudo junto às comunidas mais vulneráveis.

Tampouco penso que pode se falar em tentar estimar a demanda reprimida: esta suporia que diferentes instituições e organizações da sociedade já saibam o que fazer para lidar com mudanças de clima, mas ainda não encontraram os meios; outras, sobretudo no campo corporativo e lucrativo, como por exemplo do agronegócio, da mineração, da exploração e produção de combustíveis, de veículos, etc., não dependem de investimento governamental não reembolsável. Mas, por exemplo, muitas prefeituras, associações comunitárias e até ONGs que atuam no campo do desenvolvimento socioambiental e da inclusão social não dispõem atualmente de quadro técnico que lhes permita fazer as conexões entre mudanças climáticas e os desafios que lidam cotidianamente nas suas áreas de atuação.

Necessário, assim, nas diversas regiões geográficas do país, buscar qualificar distintos atores sociais e instituições públicas para associar mudanças de clima (mitigação e adaptação) às suas atividades e criar capacidades de identificação de possíveis ações e custos envolvidos. Isso vai requerer uma atenção e investimento do Fundo Clima na ampliação de capacidades, sobretudo de organizações da sociedade e órgãos governamentais locais.

A capacitação para ações em mudanças de clima, consistentes com planos nacional, estaduais ou locais em mudanças de clima e sustentabilidade socioambiental, deveria ser um esforço contínuo por alguns anos, em parceria com organizações da sociedade (ONGs, trabalhadores, comunidades tradicionais e rurais, etc.) para que gradativamente se amplie a qualidade e a intensidade da demanda, acelerando assim a implementação de ações efetivas em mitigação e adaptação. Isso poderá ser viabilizado se o Fundo Clima equacionar os dois desafios seguintes.

4. Instrumentos e processos administrativos adequados e eficientes.

Os técnicos do MMA que operam as atividades de recursos não reembolsáveis do Fundo Clima (o BNDES é o gestor financeiro dos recursos reembolsáveis) têm alertado, desde 2011, para a necessidade de identificação e uso de mecanismos administrativos mais ágeis.

Estimulados por diversas experiências, inclusive de outros fundos públicos, aqui o GT não reembolsável dedicou bastante tempo.

Parece, entretanto, que a Administração Federal ainda não logrou ter mais ousadia e senso de eficiência. Usa-se (ou abusa-se) de convênio como instrumento para transferência de recursos não reembolsáveis para organizações da sociedade civil. Ora, esse instrumento pressupõe que o tomador de recursos, seja órgão ou entidade da administração pública estadual, do Distrito Federal ou Municipal, direta ou indireta, consórcios públicos, ou, ainda, entidades privadas sem fins lucrativos, vá se envolver realização de projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco em regime de mútua cooperação mediante recursos financeiros de dotações consignadas nos orçamentos fiscal e de seguridade social da União.

Mas há outros mecanismos: ainda nos termos da Portaria Interministerial 507, além de convênios, tem-se “Termo de Cooperação” e Contrato de Repasse. O primeiro lida com a “transferência de crédito de órgão ou entidade da administração pública federal para outro órgão federal da mesma natureza ou autarquia fundação pública ou empresa estatal dependente”. O contrato de repasse visa a “transferência de recursos financeiros por intermédio de instituição ou agente financeiro público federal, atuando como mandatário da União”. De acordo com a Lei nº 9790/1999, termo de parceria é o instrumento jurídico para transferência de recursos para organizações sociais de interesse público – OSCIPs. E pela lei que regulamenta licitações públicas (nº 8666/ 1993), existe o Contrato Administrativo de Execução ou Fornecimento – CAEF: “instrumento jurídico que disciplina a execução de obra, fornecimento de bem ou serviço, tendo como contratante o ente que figura como convenente”.

Enfim, a depender do demandante e do tipo de atividade a ser apoiada dever-se-ia utilizar apropriado instrumento, entre os legalmente disponíveis. Dos debates deve sair a recomendação de quando se buscar tomadores (demandantes) da sociedade que o Fundo Clima busque processo, com chamada pública, para engajar, por exemplo, organização da sociedade civil de interesse público, que, mediante termo de parceria, poderá fazer a aplicação, inclusive junto a terceiras organizações, dentro das linhas previamente aprovadas pelo Comitê Gestor. Termos de parceria com OSCIP permitiriam, inclusive, alocar recursos em despesas (como material permanente, salários), que não são legalmente permitidas em convênios.

5. Aumento substancial da proporção de recursos não reembolsáveis.

Mesmo na hipótese do Conselho Monetário Nacional autorizar juros subsidiados ou com taxa zero para que o BNDES aplique recursos reembolsáveis do Fundo Clima, melhorando assim a performance no fluxo desses, ainda assim ficará no ar a pergunta: que diferença faz o Fundo Clima, quando outros instrumentos e programas públicos investem dezenas ou centenas de bilhões de reais em atividades e infraestruturas inconsistentes com a necessidade de se construir um Brasil menos impactante (para si e para demais países) em mudanças de clima?

Penso que a diferença poderia estar na ousadia de ampliar de forma significativa a proporção de recursos não reembolsáveis a serem disponibilizados. Com tal convicção, levantei essa hipótese em reunião do grupo técnico em dezembro e seus integrantes ficaram sensibilizados e estimulados. O sonho seria chegar a 50% ou mais do total de recursos. Mas, sabemos, se não equacionados os desafios anteriores, de fomento à demanda, qualificação dos demandantes, uso de instrumentos adequados, pouco se avançará. Uma estratégia seria a gradual ampliação dos recursos não reembolsáveis: se em 2013 serão em torno de 22 milhões de reais, por exemplo, por que não ampliar 50% a cada ano, chegando a 33 milhões em 2014 e 50 milhões em 2015? E seguir ampliando depois.

Certamente haverá resistências. Mas ambição assentada em estudos claros, ações efetivas e senso de eficácia e eficiência poderão temperar, além da mobilização da sociedade, as decisões políticas para que tal quadro seja logrado.

E, na reta final desse grupo técnico sobre recursos não reembolsáveis, está a tarefa de elaborar “ementas”, breves documentos que justifiquem novas linhas e áreas temáticas, regiões geográficas, modalidades de iniciativas e instrumentos e, sobretudo, apontem valores sensatos de aplicação de tais recursos. Essas propostas tem que ser encaminhadas antes da derradeira reunião no início de fevereiro de 2013.

Olhando adiante

Até aqui descrevi e trouxe reflexões que consideram o Fundo Clima em si, suas operações e escopo, tarefa que se desdobra do exercício da função de representante junto ao Comitê Gestor. Mas necessário, como cidadão, também vislumbra o Fundo Clima à luz dos diversos mecanismos de investimentos públicos e seus impactos em nosso país. Por isso, torna-se ainda mais relevante a questão inicial: qual a diferença que faz ou pode fazer o Fundo Clima?

Se não respondida a contento, esse Fundo, que tinha previsão de poder chegar a mobilizar R$ 600 milhões anualmente, pouco servirá para ajudar a colocar o País na rota de uma nação de baixo carbono, sustentável e justa. A tarefa certamente não é só do Fundo, mas esse fica em uma situação de insignificância quando se compara o montante de investimentos públicos em projetos que levam o desenvolvimento para outro rumo, o de intensificação da emissão de gases de efeito estufa (por exemplo, com mais termoelétricas, ampliação da frota de veículos, edificações de baixa eficiência energética e ventilação, etc.).

Aprimorar o Fundo Clima é oportuno e preciso. Enfim, copo meio cheio e meio vazio. Onde está a nascente dessas águas e para aonde elas fluem? Quem as controlam? Fica aqui o meu alerta e o chamado para o exercício da governança nesse instrumento da política nacional de mudança de clima.

* Rubens Harry Born é representante de ONGs no Comitê Gestor do Fundo Nacional de Mudanças de Clima, indicado pelo Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Desenvolvimento e Meio Ambiente (FBOMS); integrante do Grupo de Trabalho sobre Mudanças de Clima desse Fórum(GT Clima); e fundador e integrante do Vitae Civilis – Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz (www.vitaecivilis.org.br).