Mais do que um retratista da adolescência, Gus Van Sant é o diretor dos rompimentos. Nem todo rompimento ocorre na adolescência, mas toda adolescência é permeada por rompimentos. Daí a facilidade em colocar o selo raso sobre o diretor de Gênio Indomável, Elefante, Paranoid Park e Milk – filmes sobre jovens (nem sempre adolescentes), é verdade, mas que em determinada altura da vida tiveram de assumir a conta dos próprios atos.

Enoch e Annabel desenham o chão com giz para simular a própria morte, tema que os aproxima em Inquietos.

Se algo liga todos esses filmes ao seu trabalho mais recente, Inquietos, é justamente o olhar sobre o processo de amadurecimento vivido por personagens deslocados de seu meio e que, em algum momento da história, veem as brincadeiras deixar de ser brincadeiras – e as ações passam a ter consequências sérias, trágicas, ou simplesmente diferentes da pretensão original, como rabiscar o quadro negro de matemática para se distrair, surfar em trem em área proibida, planejar a destruição da própria escola ou criar movimentos políticos para perpetuar a existência. O saldo de todos os filmes é o que faz do diretor uma espécie de leitura obrigatória do seu tempo.

Inquietos mantém a tradição, mas desta vez mergulha mais fundo na temática. Para isso, Van Sant se apoia em dois adolescentes incomuns, desses que parecem sempre à margem de qualquer grupo. O deslocamento é compreendido ao longo do filme, embalado, já no começo, com a emblemática Two of Us, primeira música do último LP dos Beatles e que fala sobre jovens que dirigem sem rumo.

Diferentemente do que supostamente fariam os jovens de sua idade, Annabel Cotton, personagem de Mia Wasikowska (sim, a mesma da versão Tim Burton de Alice no País das Maravilhas) e Enoch Brae (Henry Hopper, filho de Dennis Hopper, morto em 2010) não ficam o tempo todo manejando iPods ou iPads, nem trocando e-mails nem ideias em salas de bate-papo eletrônico, nem bebendo com amigos, nem falando de festas ou baladas; ela não transparece o menor lamento por não ser líder de torcida nem ele por não ser atleta ou bolsista da escola.

Em vez disso, Annabel gosta de livros sobre pássaros e tem Charles Darwin como referência intelectual. Coleciona histórias sobre cada espécie, como a do pássaro que pensa ter morrido toda vez que escurece e, pela manhã, ao descobrir que está vivo, canta de alegria.

Enoch, por sua vez, largou os estudos por não ser exatamente um aluno comportado. Quieto, esquisito, com roupas sempre escuras e cabelo despenteado, ele não gosta de carro porque os considera perigosos. Passa boa parde de seu tempo jogando batalha naval com um amigo imaginário – o fantasma Hiroshi, um camicase que jogou seu avião contra navios norte-americanos durante a Segunda Guerra. E, como Annabel, tem o estranho hábito de frequentar de penetra os funerais de pessoas desconhecidas.

No filme, Gus Van Sant mantém a tradição de narrar processo de rompimento vivido por adolescentes.

Nos dois casos, a relação com a morte, que tenta ser encarada de forma natural, é o que aproxima os dois personagem, mas por motivos diversos. Um para se conformar que, como seus pais, mortos num acidente de carro, todo dia alguém se despede de alguém que deixa a vida. Outra para se adaptar à ideia da passagem. Com um tumor na cabeça, Annabel é paciente terminal e, segundo os médicos, não tem mais de três meses de vida.

Mais que o destino imposto, impressiona no filme como a fatalidade é encarada pelos dois jovens, justamente numa idade em que nada parece ser grande coisa, e que tudo (os bons e os maus momentos) parece escorregadio, fugaz, passageiro, transitório. Por serem tão novos e, em tese, não acumularem as amarguras da vida adulta (carregada de pesos, responsabilidades, dependências, pressões, trabalhos, expectativas, missões), Enoch e Annabel conseguem rir da tragédia iminente ou driblar o tema espinhoso de maneira leve, irônica.

Quando alguém diz sentir muito pelo destino de Annabel, ela simplesmente sorri. E diz: “Está tudo bem. E, se não está agora, uma hora vai ficar”.

Não se sabe se o fatalismo é só uma forma de se evitar a dor, ou sintoma de que a ficha ainda não caiu. Mas a aparente indiferença deles em relação à morte faz lembrar o esforço comum de crianças que, em momentos difíceis (como o enterro de familiares), fingem não se importar, e fazem esforço considerável para sorrir, mudar de assunto, mostrar que são fortes o suficiente para não chorar.

É esse esforço que faz do encontro improvável o mais verossímil dos retratos sobre uma infância interrompida – no caso, não por algo que se revela, mas por algo que está prestes a acabar.

Sobre o tempo, o diretor poderia cair na vala comum das lições piegas de um filme feito para arrasar quarteirões, e botar na boca de alguém a qualquer momento a importância de se viver a vida enquanto há vida, e de dizer o que deve ser dito antes que as histórias sejam interrompidas pelo imprevisível. No filme, nada é mais previsível do que a morte: Annabel sabe que vai morrer e Enoch sabe que, mais dia menos dia, vai se despedir para sempre da menina com quem acaba de descobrir o mundo.

É justamente por estar no cronograma que a morte, durante todo o filme, é tratada como um fim em si, um caminho para o qual não há alternativa se não a serenidade e a coerência.

Por isso, todos parecem encarar como uma espécie de privilégio o fato de saberem o prazo para o próprio fim, como os passos calculados de um camicase que se despede no momento em que decola. Não por outro motivo, um dos pontos altos do longa são os diálogos dos dois adolescentes sobre como deve ser organizado o funeral de Annabel. Ela diz o que deve ser servido, e como devem estar dispostos os pratos gordurosos, os doces e as bebidas. Monta para isso um sistema de catalogação similar à das espécies, com filos, classes, ordens, famílias, gêneros e espécies.

A coisa só muda de figura quando eles se perguntam, a certa altura, sobre o que existe do outro lado. É o momento em que a serenidade pede licença e se interrompe – porque as respostas já não são encontradas nas páginas de A Origem das Espécies, a profissão de fé num tempo de descrenças e despedidas, em que a ciência ensina que a sobrevivência cabe apenas aos mais aptos – e é, ainda assim, insuficiente para declarar a vitória da desistência e do desapego, ainda que todos saibam para onde tudo leva.

* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.