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África do Sul está longe de honrar o legado de Mandela

O líder da luta sul-africana contra o apartheid, Nelson Mandela, morreu aos 95 anos na noite do dia 5 deste mês. Foto: Cortesia do Sistema de Informação e Comunicação do governo da África do Sul
O líder da luta sul-africana contra o apartheid, Nelson Mandela, morreu aos 95 anos na noite do dia 5 deste mês. Foto: Cortesia do Sistema de Informação e Comunicação do governo da África do Sul

 

Johannesburgo e Port Elizabeth, África do Sul, 9/12/2013 – Enquanto o mundo chora a morte de quem foi muito mais do que o primeiro presidente democraticamente eleito da África do Sul, Nelson Mandela, seu amigo e incondicional político Tokoyo Sexwale afirma que não é tão simples honrar seu legado. Mandela morreu às 20h50 (hora local) do dia 5, aos 95 anos, rodeado por sua família em sua casa em um subúrbio de Johannesburgo.

“Pedimos a todos que honrem Madiba (nome do clã ao qual pertencia e com o qual o povo sul-africano o chamava carinhosamente), encarnando sua herança. Hoje somos livres graças a Mandela”, afirmou Sexwale à IPS, após a morte de seu amigo. “A morte é algo triste. Mas podemos celebrar muitas coisas da vida de Madiba. Foram 95 anos bem vividos”, acrescentou.

Líderes de todo o mundo expressaram sua tristeza pelo falecimento do prêmio Nobel da Paz 1993. Mas foi Ahmed Kathrada, amigo próximo e confidente de Mandela, que fez muitos chorarem com seu tributo. “Nos conhecíamos há 67 anos, e nunca imaginei que seria testemunha da realidade inevitável e traumática de sua morte… A quem procurarei em busca de paz, consolo e conselho?”, declarou o ativista político e ex-assessor de Mandela, em uma carta aberta divulgada no dia 6.

Em uma entrevista anterior ao falecimento de Mandela, Kathrada disse à IPS que “há muito por fazer, porque a principal mensagem com que Madiba saiu da prisão (em 1990, após 27 anos encarcerado) foi o do antirracismo. Isso significa viver em um país de diferentes crenças políticas”, afirmou. Em seu escritório há uma fotografia onde aparece sentado em uma cadeira junto a Mandela, seu ex-comandante em chefe, rindo como se estivessem compartilhando uma piada. “É ora de se retirar, Madala”, escreveu Mandela à mão sobre a imagem, que deu de presente a Kathrada em 2001. “Entre nós nos chamávamos de madala (velho). Todo mundo o chama de Madiba, mas para mim ele era madala”, contou.

A foto reflete o profundo vínculo que os unia, nascido nos anos que passaram juntos durante a luta por uma África do Sul livre e democrática. Ambos foram condenados à prisão perpétua no processo por traição de Rivonia (1963-1964). Eles e outros dirigentes do hoje governante Congresso Nacional Africano (CNA), principal força política do movimento negro, foram acusados de sabotagem contra o regime segregacionista branco do apartheid, que até 1994 oprimiu a maioria da população deste país.

Kathrada e Mandela cumpriram juntos parte de sua condenação na Ilha Robben. Quase cinco décadas depois, Kathrada disse que com Mandela compartilhou uma relação franca e aberta. “Madiba não era um santo, mas tinha qualidades. Não abandonou seu compromisso de combater a injustiça. Era um tigre. Sabíamos que ganharíamos a luta, que conseguiríamos a democracia. Entretanto, jamais me passou pela cabeça que Mandela chegaria a ser presidente”, afirmou.

Em 1994, Mandela se converteu no primeiro presidente negro da África do Sul e cumpriu apenas um mandato, até 1999. Porém, esse período foi suficiente para que Mandela, advogado de formação, reformasse radicalmente o sistema legal sul-africano, segundo o juiz Siraj Desai, ativista estreitamente envolvido em muitas batalhas jurídicas contra o apartheid. “Sua contribuição para o marco legal baseado nos direitos humanos é incomensurável. Ele mudou completamente o modo como exercemos o direito. Seu legado está expresso na Carta de Direitos Humanos”, que constitui o segundo capítulo da Constituição, explicou à IPS.

Faziola Farouk, ativista pela justiça social na África do Sul, acredita que os problemas que Mandela descreveu em seu depoimento durante o julgamento de Rivonia continuam em vigor. “Mandela falou dos moradores das áreas rurais, de como sofriam pela pobreza do solo e com as secas, das atrozes condições de trabalho dos agricultores negros, da desigualdade (nas zonas urbanas), de um sistema educacional partido em dois e do enorme impacto da desnutrição na capacidade de aprendizagem das crianças”, detalhou à IPS.

“A triste realidade é que alguém pode pegar fragmentos textuais de seu discurso de 1963 e aplicá-lo para abordar a realidade que muitos africanos enfrentam atualmente”, ponderou o ativista. Comove o fato de as vidas de tantos compatriotas ainda não terem mudado, ressaltou Farouk, admitindo, no entanto, que o acesso à educação melhorou radicalmente desde que a África do Sul se converteu em uma democracia, em 1994.

No entanto, “se olharmos nosso país hoje, nos damos conta de que o estarrecedor de seu discurso é que em muito sentidos falhamos”, pontuou Farouk. “A desigualdade de renda é a razão central de muitos fracassos do governo para fazer respeitar os direitos humanos. Se não a enfrentarmos, não vamos superar nossos problemas”, ressaltou.

Para a ativista pela igualdade de gênero Lindsay Ziehl, do ponto de vista legislativo, as mulheres sul-africanas estão muito melhor graças à influência de Mandela. “Ele deu uma contribuição significativa para igualar as condições das mulheres. Agora temos melhores leis, melhor capacitação nas delegacias e nos tribunais. Pela primeira vez as pessoas entendem que violência doméstica não é um assunto apenas de matrimônio”, apontou à IPS.

Em 1998, a África do Sul adotou a Lei sobre Violência Doméstica, que reconhece os abusos econômicos, emocionais e físicos nas relações pessoais entre homens e mulheres. Ziehl acrescentou que agora há mais do que nunca mulheres participando da política. A África do Sul ocupa o terceiro lugar mundial em termos de representação feminina no parlamento.

Por outro lado, Daygan Eagar, do Projeto de Promoção da Saúde Rural, disse à IPS que, ao analisar os direitos sanitários dos pobres, “não houve muitas mudanças; na verdade, em algumas áreas houve retrocesso”. A política econômica se focou nas áreas urbanas, enquanto as rurais ficaram muito desatendidas. “Imediatamente depois de 1994, houve um enorme aumento da quantidade de instalações de saúde construídas, mas não se concentraram na provisão de serviços nem no uso sustentado dos recursos”, enfatizou.

Uma pesquisa do Projeto de Promoção da Saúde Rural mostra que cerca de 15% das famílias rurais são mais pobres pelo “efeito catastrófico” dos custos do transporte para chegarem aos locais de atendimento médico, acrescentou a ativista. Enquanto o mundo chora a morte de Mandela, Kathrada acredita que suas ações e sua vida bastam para criar um “mundo de jovens Madibas. Recordemos o que defendeu e porque sacrificou toda sua vida: construir uma nação unida sobe uma só bandeira, sob um só hino”, concluiu. Envolverde/IPS