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O lado sombrio das migrações internacionais

Meninos trabalhadores resgatados em Nova Délhi esperam para serem enviados às suas aldeias. Foto: Bachpan Bachao Andolan
Meninos trabalhadores resgatados em Nova Délhi esperam para serem enviados às suas aldeias. Foto: Bachpan Bachao Andolan

 

Nações Unidas, 4/10/2013 – A quantidade de migrantes internacionais cresce inexoravelmente, enquanto continuam proliferando notícias que os envolvem e que falam de situações análogas à escravidão. Atualmente, 232 milhões de pessoas vivem e trabalham fora de seus países de origem e as remessas de dinheiro que enviam para suas famílias somam mais de US$ 400 bilhões anuais, quantia que está aumentando.

Os ganhos dos migrantes quase quadriplicaram os US$ 126 bilhões de ajuda oficial ao desenvolvimento dados pelas nações ricas ao mundo pobre no ano passado, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). A injeção de liquidez em países em desenvolvimento como Índia, Bangladesh, Marrocos, México, Sri Lanka, Nepal, Egito e Filipinas é um dos efeitos mais positivos das migrações.

No entanto, o que é uma benção para alguns, é uma calamidade para outros. Do lado negativo figura a contínua exploração dos imigrantes, especialmente no Oriente Médio, devido ao aumento do “trabalho escravo”, que implica baixos salários, inadequada atenção médica e terríveis condições de trabalho.

Joseph Chamie, ex-diretor da Divisão de População da ONU e que escreveu amplamente sobre migrações internacionais, disse à IPS que, embora geralmente haja uma condenação universal a esses trabalhos “escravos” realizados por imigrantes, as proibições são difíceis de serem aplicadas, já que frequentemente acontecem dentro das casas ou em recintos pequenos. Uma estratégia para abordar isso é o Convênio 189 sobre trabalho decente para trabalhadoras e trabalhadores domésticos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que entrou em vigor em setembro.

Por ocasião do Diálogo de Alto Nível sobre a Migração Internacional e o Desenvolvimento por Migrações Produtivas, entre ontem e hoje na ONU, Abdelhamid El Jamri, presidente do Comitê de Direitos dos Trabalhadores Migratórios, destacou que os migrantes não são matérias-primas, mas seres humanos. “Os mutáveis padrões das migrações, e a exploração e discriminação que os trabalhadores migrantes enfrentam em setores como a construção e a agricultura, tornaram mais crucial do que nunca a proteção de seus direitos”, destacou.

A convenção internacional sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e de suas famílias é um dos principais tratados internacionais sobre direitos humanos. Porém, só está ratificado por 47 dos 193 Estados membros da ONU. Esse pacto não foi ratificado por nenhum dos principais países de destino, entre eles Estados Unidos, os países da União Europeia e os do Golfo, onde vivem e trabalham milhões de imigrantes, segundo Jamri.

Chamie, consultado sobre o diálogo de alto nível na ONU, disse que, diante das atuais realidades políticas e da contínua divisão entre as nações que importam e exportam mão de obra, é muito improvável que o diálogo produza “algo além de lindas palavras”. A grave divisão entre as duas partes tem a ver principalmente com a reunificação familiar, os direitos da população migrante, as migrações ilegais e as responsabilidades compartilhadas, pontuou.

Kul Gautam, cidadão do Nepal e ex-diretor executivo adjunto do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), afirmou à IPS que os ganhos recebidos pelos que emigram agora são a principal fonte de renda nacional em seu país de origem. Cerca de US$ 4 bilhões em remessas de emigrantes entram por ano no Nepal, equivalentes a 25% do produto interno bruto, ressaltou.

Dos 400 mil jovens que anualmente entram no mercado de trabalho, cerca de 300 mil buscam emprego no exterior. A maior concentração de trabalhadores migrantes do Nepal está no Catar e na Malásia (cada um com cerca de 400 mil), seguidos por Arábia Saudita e outros países do Golfo.

Guatam é crítico do duro tratamento dado aos trabalhadores migrantes, especificamente nos países do Golfo. Segundo ele, as últimas denúncias sobre escravidão procedem do Catar, um dos países mais ricos do mundo. Ali, grande quantidade de trabalhadores emigrantes do Nepal, um dos países mais pobres do mundo, são maltratados em um projeto de construção de alto perfil: as obras de infraestrutura para o Mundial da Fifa de 2022.

Uma pesquisa feita pelo jornal britânico The Guardian retrata um cenário arrepiante de milhares de imigrantes obrigados a trabalhar em condições desumanas, sem receber pagamento por longos períodos e carentes de equipamentos de segurança. O governo nepalês anunciou essa semana que nos dois últimos anos morreram 70 imigrantes dessa origem enquanto trabalhavam em obras de construção com vistas ao campeonato de futebol, em Doha, capital do Catar.

Quanto ao fortalecimento das normas internacionais, Gautam ponderou ser difícil “dizer se o diálogo de alto nível (ontem e hoje) terá um impacto significativo. Contudo, deveria ter”. No Nepal, poucos ouvem sobre elas, disse, acrescentando: “Não creio que a delegação nepalesa esteja bem preparada, com propostas específicas. Mas penso que, para o desenvolvimento, as migrações são muito mais importantes do que, digamos, a ajuda, o comércio, os investimentos estrangeiros diretos, etc., no atual contexto do Nepal, e no contexto de muitos países que dependem das remessas como fonte principal de sua renda”.

Segundo Gautam, para ser justo, certamente não é a política do governo do Catar praticar ou perdoar as condições de trabalho semelhantes à escravidão, mas são empresas privadas inescrupulosas e intermediários, tanto no Catar como no Nepal, os responsáveis por essas práticas desumanas.

Indagado se a ONU está fazendo o suficiente para impedir os abusos, Chamie disse à IPS que a questão das migrações internacionais nunca foi apresentada como uma prioridade no fórum mundial. Em contraste, com outros assuntos globais, como infância, comércio, meio ambiente, finanças, mulheres e idosos, todos presentes em distintas conferências da ONU, as migrações internacionais são “o enteado esquecido”, ressaltou. Segundo Chamie, isto ocorre porque “os países de destino, especialmente os mais desenvolvidos, desejam manter o assunto fora da ONU”. Envolverde/IPS