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Revolução dos Cravos sob a sombra da troika

O dramaturgo Fernando Sousa era suboficial do exército em 25 de abril de 1974. Foto: Mario Queiroz/IPS

Lisboa, Portugal, 29/4/2013 – A tradicional comemoração do levante contra a ditadura corporativista (1926-1974) de Portugal deixou de ser uma celebração popular e se transformou em uma data simbólica para enormes manifestações contra a política de austeridade draconiana do governo de Pedro Passos Coelho. Pelo segundo ano consecutivo, a Revolução dos Cravos foi comemorada sob o sinal da indignação e incerteza sociais devido à persistência dos cortes fiscais e de direitos sociais impostos pela troika de credores internacionais.

No dia 25, completaram-se 39 anos desde que 144 capitães do exército português, integrantes do Movimento das Forças Armadas (MFA), derrubaram a mais antiga ditadura europeia e desmantelaram um arcaico império que perdurou por 560 anos. Os atos oficiais não contaram com os mais destacados militares que encabeçaram o levante, que faziam parte do Conselho da Revolução do MFA, ausente sem sinal de protesto pelo rumo “contrário ao espírito de abril” do atual governo.

Na tribuna de honra da sessão especial ficaram vazios os assentos das máximas figuras da revolução ainda vivos, como os generais Pedro Pezarat Correia, Franco Charais e Amadeu Garcia dos Santos, os coronéis Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho, e Mario Tomé, e os almirantes Manuel Martins Guerreiro e Vítor Crespo, todos eles jovens capitães em 1974.

A eles uniu-se, “em solidariedade com os militares que abriram caminho para a democracia”, o ex-presidente Mario Soares (1985-1995), líder histórico do socialismo lusitano e considerado pai da nação democrática inaugurada após o golpe de Estado que pôs fim à velha ditadura imposta em 1926.

As comemorações deste ano foram especialmente controladas pelo medo de manifestações hostis por parte da população. No parlamento, ao contrário de anos anteriores, entraram somente os convidados para uma cerimônia quase exclusivamente de políticos. O deputado socialista e ex-ministro José Lello, à saída do parlamento, disse que isto ocorreu porque “têm medo” e se sentem “acossados” por uma população indignada com a situação de extrema precariedade em que vive, devido às medidas de austeridade impostas pela troika formada por União Europeia (UE), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Central Europeu.

Os jardins do palácio presidencial de Belém e do governamental de São Bento, contrariando a tradição dos 38 anos anteriores, não foram abertos ao público porque o presidente Aníbal Cavaco Silva e o primeiro-ministro Passos Coelho quiseram evitar “a presença de grupos protestando”, afirmou Lello. Antonio Costa Pinto, professor de ciências políticas da Universidade de Lisboa, considerou inaceitável que as instituições políticas, em uma data tão simbólica “na qual se comemora a festa da democracia, terminem por se proteger das reações do povo”.

Porém, “os dirigentes não são os únicos representantes da nossa sociedade”, disse à IPS o dramaturgo e jornalista Fernando Sousa, que em 1974 era suboficial do exército e recém-chegado de Moçambique, para onde foi enviado para combater nessa frente de guerra independentista de então, depois de ter sido recrutado obrigatoriamente na universidade. Ativo militante da esquerda militar durante o período revolucionário, Sousa optou pelo jornalismo e mais tarde se consagrou como autor de obras de teatro com a guerra colonial em Moçambique como pano de fundo.

Em seu “refúgio-estúdio” de Magoito, na costa norte de Lisboa, na noite do dia 24 reuniu um grupo de amigos para, simbolicamente, esperar a zero hora do dia 25, momento em que todos começaram a cantar Grândola Vila Morena, a canção contrassenha usada naquele dia para o avanço dos blindados rumo a Lisboa, ao mesmo tempo em que os convidava para uma pequena exposição de lembranças da época.

Em sua conversa com a IPS, Sousa não escondeu sua decepção pelo descumprimento do que esperava da Revolução dos Cravos, mas conserva o otimismo. “Posso envelhecer, mas o 25 de abril jamais”. Como muitos portugueses de sua geração, o ex-militar faz um balanço com claros sinais de amargura, “entre o que foi sonhado e o realizado”, qualificando a efeméride de “um aniversário onde reina a sensação de retrocesso”.

“Ao observar o caminho ultraliberal adotado pelo governo atual, muitas vezes penso: para que fizemos o 25 de abril? Mas, de todo modo, sou otimista porque é preciso acreditar que a política não pertence apenas aos políticos, mas também à sociedade civil, às mulheres, aos homens e às crianças, empenhados em construir uma sociedade nova”, afirmou Sousa. “A data de 25 de abril significava uma sociedade justa e não este pesadelo que estamos vivendo agora, com políticos que nos desviaram do MFA para o FMI”, concluiu Sousa, ironicamente.

A tradição só se manteve no desfile da Avenida da Liberdade, principal artéria de Lisboa, repleta de milhares de pessoas em uma marcha liderada pelo coronel Lourenço e o carro blindado em que Marcello Caetano, primeiro-ministro no momento do golpe, e o decorativo presidente, Américo Thomaz, foram transportados na época até o aeroporto e expulsos para o Brasil.

O aposentado Alberto da Ponte disse à IPS durante o desfile que “as expectativas que o povo tinha em 1974 para uma vida melhor foram frustradas pelos partidos políticos (da direita e socialistas), que foram se alternando no poder durante 35 anos e que são os culpados por nos levarem ao abismo desta democracia imposta de acordo com seus interesses”.

Ao seu lado estava o operário têxtil Feliciano Dias Marinho, que disse à IPS: “A lição que nos deixam estes quase 40 anos de democracia é que a alternância entre os socialistas e a direita nos levaram à bancarrota, e que hoje só o que temos é a troca entre eles, sendo necessário mudar por uma democracia autêntica”.

Nas primeiras filas da marcha, o universitário Carlos Medina Abreu disse estar “totalmente de acordo com a atitude de Mario Soares e dos capitães de abril, de não participarem dos atos do parlamento, porque este regime é uma farsa de democracia, com atores que seguem ao pé da letra o roteiro escrito pelos tecnocratas do FMI e da UE”. Envolverde/IPS