Setor suplementar ou privatização de direitos? O mercado dos planos privados no Brasil.

A Constituição Federal de 1988 define: a saúde é direito de todos e dever do Estado. E também é livre à iniciativa privada, que pode participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde (SUS), constituído pelas ações e serviços públicos. Ainda de acordo com a Constituição, a atuação da iniciativa privada deve seguir as diretrizes do SUS. Neste segmento privado se inserem, entre outros, os serviços prestados pelos planos e seguros privados de saúde.

Os usuários desses serviços fixam contratos, e pagam taxas às empresas que os oferecem, para ter acesso a diferentes modalidades de assistência médico-hospitalar privada, seja pela escolha entre serviços oferecidos por uma rede credenciada à empresa ou pela opção entre os serviços privados no mercado, que serão custeados pela empresa. Em 1998, a Lei 9656 regulamentou sua atuação e, dois anos depois, foi criada uma agência reguladora voltada especificamente para a chamada “assistência suplementar à saúde”, ou seja, o mercado dos planos — a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Mas hoje como atuam os planos e seguros privados, e quais suas relações com o sistema público? É o que discutiremos nesta matéria especial da Revista Poli sobre privatização da saúde.

Histórico

Na abertura desta matéria, dissemos que a Constituição de 1988 definiu a saúde como dever do Estado e, também, como um espaço livre à iniciativa privada. Mas se engana quem pensa que a conformação do mercado de planos de saúde começou a partir daí. Segundo informações da ANS, publicadas em artigo disponível em seu site na internet, a origem desse mercado no Brasil está nas décadas de 1940 e 1950 e é identificada com empresas do setor público que utilizaram seus recursos e de seus empregados para o financiamento de assistência à saúde, oferecida por grupos formados por médicos.

Cabe lembrar que, naquela época, não havia um sistema de saúde universal no Brasil. A assistência médica era responsabilidade da previdência social, que atendia, por meio dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), os trabalhadores com carteira assinada. Ao Ministério da Saúde, cabiam as ações gerais de saúde coletiva, como o enfrentamento de endemias. Neste contexto, a criação de empresas estatais também trouxe a assistência médico-hospitalar como um dos benefícios oferecidos aos funcionários desses estabelecimentos, diferenciada da que era oferecida a todos. Já entre as empresas privadas, foram as indústrias automobilísticas estrangeiras que começaram a oferecer esse tipo de assistência a seus funcionários no Brasil.

Mas, de acordo com a ANS, foi nos anos 1960 que as cooperativas médicas e empresas de medicina de grupo, privadas, firmaram convênios com empresas empregadoras, mediadas pela previdência social, estimulando decisivamente o processo de atuação empresarial na medicina e determinando o início da expansão do mercado dos planos — sobretudo entre a população inserida formalmente no mercado de trabalho. Enquanto isso, nos serviços públicos, a assistência à saúde era ampliada, reafirmando a lógica de segmentação. No final dos anos 1970, foi criado o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), voltado especificamente para a assistência médica aos trabalhadores com vínculo formal.

Um mercado em expansão

“O mercado de planos e seguros de saúde privados tem grande interferência no sistema de saúde como um todo e é um setor em franca expansão: hoje, 25% da população brasileira está conveniada a planos de saúde”. A afirmação de Mário Scheffer, pesquisador do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), nos indica alguns dos principais temas que permeiam o debate sobre a saúde suplementar no Brasil: o “peso” desse segmento e sua relação com o sistema público. Mas, como entender que esse segmento tenha tanta força — e continue se expandindo — em um país com assistência universal à saúde?

Para Lígia Bahia, doutora em saúde pública e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é preciso entender que a conquista democrática obtida com a criação do SUS não foi capaz de solucionar as desigualdades existentes no sistema de saúde brasileiro antes de 1988 — um mercado de planos já constituído e a segmentação nos próprios serviços públicos —, o que se agravou com o financiamento insuficiente do SUS. “A democratização e a implementação do SUS, conjugadas com o seu subfinanciamento, não dissolveram a estratificação que já havia na organização do sistema de saúde. O que ocorreu, com o SUS, foi uma ampliação do acesso com racionamento da utilização de serviços e precarização dos recursos assistenciais”, diz.

A opinião é compartilhada por Carlos Octávio Ocké-Reis, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Além de apontar o financiamento insuficiente do sistema público, ele destaca, também, que o mercado dos planos de saúde recebeu, desde o seu surgimento, uma série de incentivos públicos. E completa: “Lembrando que o surgimento do SUS se dá a partir de um sistema já segmentado, nossa hipótese é que houve uma privatização do seguro social no Brasil. A parcela da população que era atendida pelo Inamps, ao invés de migrar para o SUS em 1988, migra para os planos privados de saúde. Assim, esse setor, que deveria ser suplementar, acaba substituindo o SUS no provimento de serviços de saúde para o polo dinâmico da economia”.

Mesmo que 25% da população seja uma fatia considerável de usuários de planos privados, falar em “substituição do SUS” não seria um exagero? Note, no entanto, que, ao falar em “polo dinâmico da economia”, o pesquisador se refere à população inserida no mercado de trabalho. Isso porque, como explica Mário Sheffer, os chamados planos coletivos, ou seja, os planos oferecidos por empresas — públicas ou privadas — a seus funcionários, constituem 75% do mercado total de planos de saúde.

Nesse contexto, Lígia Bahia destaca o peso econômico da saúde suplementar no Brasil: “É preciso identificar os principais vetores de acumulação no sistema de saúde brasileiro. Determinados hospitais e empresas de planos e seguros de saúde constituem importantes plataformas para o fluxo contábil-financeiro que une o mercado de trabalho”, diz ela, que identifica ainda que é por meio do mercado de planos que são obtidas as maiores taxas de lucro no sistema de saúde brasileiro. Vejamos alguns dados: de acordo com Scheffer, esse setor é composto por 1.044 operadoras e movimentou, no ano passado, R$ 71 bilhões. Para efeito de comparação, o orçamento da União para a saúde em 2011 é de R$ 68,4 bilhões.

Carlos Octávio destaca, ainda, o chamado movimento de “financeirização” dos planos de saúde. “A partir dos anos 2000, temos a entrada do capital financeiro na dinâmica de acumulação do mercado dos planos de saúde. Isto é resultado da concentração e centralização desse mercado. A concentração é quando uma empresa de plano de saúde detém um número cada vez maior de usuários. Isto permite que ela tenha condições cada vez maiores de fixar preços, o que não ocorreria se houvesse mais concorrência. Já a centralização significa que esse mercado passa a não só intermediar o financiamento dos serviços privados de saúde, mas a ter laboratórios, hospitais… Assim, o mercado fica mais dependente de uma empresa só. Este movimento faz com que esse setor se alavanque e passe a atuar dentro de uma lógica financeira”, explica.

“Refazer a conta em praça pública”

Para compreender o funcionamento de um mercado como esse, Mário Scheffer aponta que é necessário desfazer alguns mitos. Um deles está relacionado ao seu financiamento. “Existe um mito, atualmente, de que os planos de saúde são sustentados pelas pessoas que os compram no mercado. Isto não é verdade”, afirma o pesquisador. Ele explica: “Este segmento sobrevive às custas de inúmeros subsídios diretos e indiretos, inclusive públicos. Um exemplo é a isenção de impostos para quem usa planos de saúde, que deixa de arrecadar recursos que poderiam ser investidos no setor público. Existe, também, um aporte imenso de recursos públicos para a compra de planos privados para os funcionários públicos”, diz.

Os mecanismos de isenção tributária para usuários de planos, citados por Scheffer, têm também outra vertente. Segundo Carlos Octávio, eles são uma forma de patrocinar o consumo de planos privados: “Além de deixar de arrecadar recursos, o Estado favorece que as famílias contratem planos privados de saúde, já que elas podem abater parte desses gastos do montante sobre o qual incide o seu imposto de renda. São incentivos que patrocinam o consumo de planos de saúde pelas famílias”, afirma o pesquisador. Mário Scheffer alerta, ainda, que, além dos gastos públicos, há outra forma de a parcela da população não usuária de planos ajudar a sustentar esse mercado: “Se mais de 75% do mercado são os planos coletivos, quem paga a conta é toda a população que consome os serviços e produtos dessas empresas que oferecem planos para seus funcionários. Inclusive, os 75% da população que não tem acesso aos planos”, afirma. E propõe: “Temos que refazer a conta da saúde em praça pública, derrubando alguns mitos e mostrando quem financia de fato esse sistema suplementar”.

E o SUS com isso?

Que os planos de saúde são frequentemente apresentados como uma alternativa aos problemas dos serviços públicos, todo mundo sabe. Mas o fato de que seus usuários utilizam o SUS muitas vezes é esquecido. Esse outro lado da história é o segundo dos mitos que Scheffer quer desconstruir. “Há um livre fluxo de usuários de planos sendo atendidos pelo SUS. Isto acontece quando os usuários escolhem o SUS, porque encontram nele um atendimento melhor às suas necessidades — como, por exemplo, o atendimento em HIV/aids ou a hemodiálise aos pacientes renais crônicos —, ou quando as pessoas são excluídas dos planos, que não cobrem suas demandas”, explica. Ele lembra, ainda, que nesses casos, de acordo com a regulamentação do setor, os planos deveriam ressarcir o sistema público pelo atendimento prestado a seus usuários — o que não vem sendo cumprido pela maioria das empresas do setor suplementar e é pouco fiscalizado pela ANS.

Mário Scheffer destaca, ainda, o que chama de atuação coordenada das empresas de planos de saúde, que influencia diretamente o setor público. “Além da questão do financiamento público ao setor privado, há também gestores que atuam dos dois lados, e um livre fluxo de profissionais, como médicos. Há ainda a utilização de equipamentos públicos por essas empresas e, agora, está sendo institucionalizado algo que nos assusta muito: a reserva de espaços em hospitais públicos para os planos de saúde. Isso já acontecia nos Hospitais Universitários, que há anos têm “parcerias” e “convênios” com planos privados e atendem pacientes de planos e particulares, criando um duplo atendimento e priorizando aqueles que podem pagar. Recentemente, o governo do Estado de São Paulo propôs uma lei que estende essa prática para os hospitais do SUS que são administrados por Organizações Sociais, permitindo que reservem até 25% da sua capacidade para atendimentos aos planos de saúde”, denuncia.

Os pesquisadores ouvidos pela Poli chamam atenção, ainda, para as debilidades dos novos serviços oferecidos pelos planos privados, que acabam “empurrando” um número cada vez maior de usuários para o SUS. “A profusão de planos baratos, voltados para as classes C e D, cria planos incompatíveis com atendimentos de qualidade. São serviços caóticos, com redes credenciadas enxutas, dos quais o usuário é excluído por absoluta falta de capacidade daquela rede de dar respostas às suas necessidades. Além disso, há a questão da promoção e da vigilância em saúde, que sempre foram exclusividades do sistema público e não são previstas pela rede privada”, analisa Scheffer.

Perspectivas

Como evitar o avanço da privatização da saúde por meio dos planos e fortalecer o sistema público com qualidade? Quase todas as respostas a esta pergunta levam em consideração a questão da regulação do setor suplementar. A ANS seria, então, o grande ponto de apoio para a luta contra a privatização da saúde? Há ressalvas. Para Lígia Bahia, a agência hoje está comprometida com os interesses das empresas que deveria regular: “A ANS, embora possua um corpo técnico competente e compromissado com o direito à saúde, não se constituiu como um órgão público de regulação. Foi capturada pelos interesses das empresas reguladas. Contudo, esta não é uma situação irreversível: como qualquer outra construção social, pode e deve ser encarada como passível de mudanças”, defende a professora.

Lígia também destaca que o sentido da regulação deve ser o de restringir o setor suplementar: “Há, em algumas defesas, o pressuposto implícito de que a saída para o sistema de saúde brasileiro seria a domesticação das empresas de planos e seguros, e não a restrição dos seus espaços de atuação. Discordo radicalmente dessa tese”, diz a professora, que defende como medida concreta para a regulação do setor o fim dos subsídios públicos para os planos de saúde e para os estabelecimentos de saúde que mantenham “dupla porta de entrada” (ou seja, aqueles que atendem simultaneamente serviços públicos e privados). “Essas proposições objetivam reverter os recursos indevidamente alocados na dinamização da privatização para a efetivação do SUS e da Reforma Sanitária Brasileira”, diz.

Para Mário Scheffer, a resposta à crescente mercantilização da saúde por meio dos planos está estreitamente associada ao peso que terá o setor público. Ele também aposta na regulação como saída: “Os países com melhores resultados para a saúde do seu cidadão são aqueles em que o financiamento, a prestação de serviços e a gestão são assegurados pelo setor público. Mesmo países como o nosso, que têm um sistema misto, com papel importante cumprido pelos planos privados, só serão bem-sucedidos se a regulação desse subsistema for totalmente assumida de uma forma muito rigorosa pelo poder público”, defende.

* Leila Leal é da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz.

** Publicado originalmente no site Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio.