Cidades para pessoas: um novo jeito de ocupar a área urbana

Os trens metropolitanos de Copenhague possuem vagões especiais com engate para a roda traseira das bicicletas. Foto: Divulgação

 

Cooperativas sociais, ciclovias e espaços públicos ocupados por pessoas. Estes são os cenários que a jornalista Natália Garcia procura ao redor do mundo no projeto Cidades para Pessoas.

“Um projeto jornalístico que busca, pelo mundo, boas práticas e ideias para melhorar as cidades para seus moradores”. Esta é a descrição, feita pela própria idealizadora, do que é o projeto Cidade para Pessoas. A frase está no site onde a jornalista Natália Garcia conta as experiências que vive em cidades ao redor do mundo, nas quais ela foi buscar exemplos de interação entre elas e seus moradores.

O projeto foi viabilizado economicamente por meio de uma plataforma de financiamento coletivo. Natália já passou por cidades como Amsterdam, Cidade do México, Copenhague, Curitiba, Freiburg, Londres, Lyon, Paris, Portland, São Francisco e Strasbourg. Em todas elas pedalou pelas ruas, colecionando boas histórias que, seguindo sua vocação, ela quer dividir com o mundo.

Confira a íntegra da entrevista que a jornalista concedeu à Envolverde, descubra como Barcelona está reinventando suas relações sociais, conheça as ferramentas que a Cidade do México usa para organizar seu caos urbano, e saiba mais sobre o projeto Cidades para Pessoas.

Como surgiu a ideia do Cidades para Pessoas?

Eu, como uma boa paulistana, estressada com o trânsito e cansada de enfrentar congestionamentos todos os dias, comprei uma bicicleta. Não foi por uma questão de ativismo que comprei a bike, foi para não perder horas todos os dias nos meus trajetos. Então comecei a me locomover de bicicleta e isto mudou a minha relação com a cidade. Ao invés de entrar no carro, ligar a música e me fechar no meu mundo, eu passei a ocupar a cidade e isto despertou o meu interesse pela questão da mobilidade e do planejamento urbano.

Algum tempo depois, eu pedi demissão do emprego em que trabalhava, porque queria me dedicar mais ao assunto e precisava de tempo livre para pesquisar. Eu queria mudar a relação, inclusive com o meu trabalho. Participei de projetos ligados a planejamento urbano e, em uma entrevista que eu fiz para uma iniciativa chamada Isso não é normal, conheci o planejador Jan Gehl. Ele foi, talvez, o primeiro planejador urbano do mundo. Começou a trabalhar na década de 1960, quando estava tomando forma o modelo de cidades rápidas, com avenidas expressas, prédios enormes e áreas separadas, com habitação em uma região e comércio em outras. Então Gehl começou a pensar que as cidades tinham que ser elaboradas para as pessoas, com, por exemplo, distâncias mais curtas e prédios que contemplem a dimensão humana. Inspirada no trabalho dele como urbanista, eu resolvi fazer um projeto de viajar pelo mundo em busca de boas práticas, boas ideias, bons projetos e tudo que pudesse inspirar as cidades brasileiras. Assim nasceu o Cidade para Pessoas.

A ideia era estimular as pessoas a se relacionarem mais com cidade?

Exatamente. Eu falo sempre nas minhas palestras que a moral da história não é necessariamente “compre uma bicicleta”. Não pretendo que as pessoas deixem de andar de carro e sim que elas deixem de se locomover de lugares privados para outros lugares privados, esquecendo a cidade que está no meio do caminho. Quero estimular encontros. Quando as pessoas andam pelas calçadas, encontram outras pessoas e existe troca de ideias e de informação. É esta efervescência cultural que me inspira.

Como você conseguiu viabilizar financeiramente o projeto?

O projeto foi financiado via crowdfunding (financiamento coletivo). A ideia era viajar pelo mundo e eu precisar buscar uma forma de viabilizar isso. Então eu escrevi uma reportagem sobre crowdfunding e descobri que ia ser lançada no Brasil uma plataforma com esse modelo. É um sistema no qual você anuncia seu projeto, fala o quanto ele custa e estabelece cotas para doações. Eu consegui levantar R$ 20 mil para a primeira fase do projeto.

Calcadas permeáveis em Portland. Foto: Divulgação

Não teve nenhum grande patrocinador?

Para o projeto não. No ano passado nós fizemos uma exposição na Matilha Cultural e tivemos o apoio do Itaú Cultural, mas o projeto não tem um patrocinador e nem receita mensal.

Quantas pessoas existem na equipe do Cidade para Pessoas?

Na verdade o que existe é uma rede de pessoas que trabalham junto comigo quando é necessário e não uma equipe. Quem está mais à frente sou eu e a Juliana Russo, que é ilustradora e viajou comigo na segunda fase. E, de acordo com a necessidade, entram outras pessoas.

Quantas cidades você já visitaram ao todo?

Fora o piloto que nós fizemos em Curitiba, foram 12 cidades. No piloto nós testamos o dia a dia, como seriam as entrevistas e a dinâmica. Escolhemos Curitiba por causa do histórico positivo e da existência do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba.

Vocês visitaram alguma outra cidade no Brasil?

Não. Me perguntam muito sobre visitar cidades no Brasil. Talvez a gente faça uma versão nacional do projeto, porque tem muita coisa legal acontecendo aqui, inclusive em cidades que a gente nem imagina. Em Rio Branco, no Acre, por exemplo, tem um planejamento cicloviário espetacular.

Qual o resultado que você espera destas viagens?

Em primeiro lugar, sou jornalista e pretendo contar boas historias. Esta é a minha especialidade na vida. Todo o conteúdo que eu produzo fica livre, à disposição de pessoas que queiram experimentar colocar em prática na sua cidade o que eu estou mostrando. Não penso em um projeto que aplique as ideias, porque eu não domino a execução. Prefiro fazer conexões, alianças com pessoas que talvez entendam mais do que eu.

Das cidades que você visitou, chama a atenção a Cidade do México, porque lembra muito a cidade de São Paulo. Por que a escolha dessa cidade e como foi essa experiência?

Foi uma loucura! Eu incluí a Cidade do México no meu roteiro porque a mídia estava noticiando muitas coisas positivas sobre a cidade, principalmente depois que eles começaram a implantar um sistema de integração de linhas de ônibus e metrô. A Cidade do México começou a fazer metrô na mesma época que São Paulo, e acho que eles devem ter três vezes mais linhas, ou até mais, e é dez vezes mais barato, custa o equivalente a R$ 0,30. Chegando lá, me deparei com uma situação caótica. Para se ter uma ideia, o sistema para tirar a carteira de motorista era tão corrupto, que eles decidiram abolir a prova. Então, oficialmente, você pode comprar a sua habilitação para dirigir. Isto gera um trânsito violento, de pessoas que não conhecem as leis. Eu andava de bicicleta e me sentia em perigo, muito mais do que em São Paulo. Por outro lado, tem iniciativas interessantes acontecendo lá, como um instituto de planejamento de transportes sustentável, que é o Instituto de Políticas para el Transporte y el Desarrollo. Tem também uma turma de pessoas que faz ações pela cidade. Eles, por exemplo, pintam uma calçada onde deveria ter uma, mas não tem.  Fazem intervenções nos espaço públicos para mostrar o que a cidade precisa. Eu acredito que o caos é um bom ambiente para o nascimento de soluções criativas e ideias fora da curva.

Entre as cidades que você visitou, alguma delas você colocaria como modelo?

Essa pergunta é meio difícil de responder. Talvez as cidades sejam modelos em algumas coisas, mas não em tudo. Copenhague me impressionou muito. A água do rio canalizado que corre em volta da cidade é limpa e as pessoas nadam nela. Mas esse rio nem sempre foi limpo. Houve um projeto de purificação, as indústrias foram removidas da região e hoje a água é limpa. A cidade tem também muitas ciclovias, que deixam o ciclista sempre seguro. A prioridade da cidade são os pedestres e eles priorizam os deslocamentos a pé, e quem fica em último lugar é sempre o carro. Eles têm um sistema de planejamento a longo prazo, mas têm também muito dinheiro para isso. Talvez essa seja a cidade que está mais próxima de ser um modelo. Mas, é importante lembrar que cada cidade tem sua lógica, sua história e sua formação cultural. Nem tudo que serve para uma serve para outra, então, é difícil falar em modelo. O que eu aprendi com essas viagens é que cada cidade tem que encontrar seu caminho. As soluções tem que ser mais locais do que universais.

Que lugares ainda não visitados você gostaria de conhecer?

Estou planejando fazer uma terceira fase do projeto, que passe por cidades que sejam, ou muito pobres, ou muito criativas. Eu quero ir, por exemplo, para Acra, em Gana, na África, que é uma cidade que tem uma história bacana e muito antiga de agricultura urbana, que abastece quase toda a cidade. Quero conhecer Nairóbi, no Quênia, que tem uma das maiores favelas do mundo, onde está rolando um projeto de urbanização espetacular. Quero visitar Thimphu, no Butão, que é a cidade que implantou o Índice de Felicidade Interna Bruta. Ao invés de medir o crescimento do país pelos índices econômicos, eles medem pelo aumento da felicidade de seus habitantes.

Em Copenhague há semáforos exclusivos para as bicicletas. O sistema de semáforos da cidade prioriza, em primeiro lugar, a fluidez dos pedestres, depois dos ciclistas e, por último, dos carros. Foto: Divulgação

Alguma das cidades já visitadas superou as suas expectativas?

Muitas me deixaram encantada. Barcelona, por exemplo, me impressionou muito. É uma cidade que está em crise, onde os jovens não têm emprego. Então, para resolver esse problema, eles estão reinventando o jeito de trabalhar e viver. No lugar de empregos remunerados com dinheiro, estão desenvolvendo uma cooperativa, chamada de Cooperativa Integral, que oferece serviços de saúde, educação, moradia, etc. A pessoa presta um serviço para a cooperativa, que pode ser qualquer coisa que ela tenha habilidade, e ganha horas, que podem ser usadas pagando o aluguel ou em uma consulta médica. Então, por exemplo, eu vou lá e faço uma oficina de jornalismo e ganho três horas nesse banco de horas. O que a cooperativa faz é eliminar o dinheiro como intermediário dessas relações sociais. Isto fortalece as relações entre as pessoas. A verdade é que cada cidade foi deixando a sua marca. Em cada um eu aprendi algo diferente.

Quais serão os próximos passos do projeto?

Eu não me preocupo muito. Sinto que o projeto vai dando passos. O primeiro foi a viagem. O segundo foi uma exposição na Bienal de Arquitetura, que eu fiz com a Juliana. Depois fizemos também a exposição na Matilha Cultural. Teve também a segunda viagem e agora temos planos para uma terceira, que eu não sei quando será. Por enquanto estou me dedicando a dar palestras, fazer matérias, conceder entrevistas, enfim, divulgar um pouco do que já fizemos. (Envolverde)

Para saber mais, acesse aqui o site do projeto.