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A desconcertante leveza da infância

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“Eu queria que esse dia nunca fosse antigamente”. Assim desabafou Pedro, de seis anos, filho de uma amiga, com a voz pesada de sono e de saudade antecipada de um dia memorável de brincadeiras. Longe de telas, shoppings e diversões eletrônicas, o pequeno contrariou os apelos do marketing, comprovando no suor, na criatividade e na companhia brincante de outras crianças que ser é mais importante do que ter, e que a maior fábrica de brinquedos do mundo funciona a todo vapor dentro deles.

Solta como um brincar, potente como um manifesto, a fala de Pedro bem poderia figurar num livro como o Casa das Estrelas – o universo contado pelas crianças, onde o professor Javier Naranjo reuniu outras pérolas igualmente interessantes como: “Adulto é uma pessoa que em toda coisa que fala, vem primeiro ela”, “Um camponês não tem casa nem dinheiro. Só seus filhos” e “Colégio é uma casa cheia de mesas e cadeiras chatas”.

De onde brotariam tais expressões uma vez que as crianças nem têm ainda sua capacidade de julgamento plenamente desenvolvida? Provavelmente elas brotem exatamente daí, dessa pouca interferência da razão sobre o que elas realmente veem e sentem. Se, pelo lado da gramática, as frases podem carecer de correção, pelo lado da sinceridade elas é que nos corrigem sobre o modo padronizado que geralmente temos de interpretar nosso mundo. A espontaneidade às vezes desconcerta para restaurar a franqueza.

Embora a razão nos ajude a filtrar nossos impulsos por meio de expressões ditas mais civilizadas, a sensibilidade é o melhor condutor de nossa expressão própria e o que nos possibilita definir, ao pé do sentimento e da letra, o que realmente queremos dizer. Como explica o poeta: “O que importa é ouvir a voz que vem do coração”.

E, para aqueles cuja criança permanece viva, as palavras se tornam fáceis de usar como brinquedos, inspirando-os a dizer o que deve ser dito de um jeito único, edificando em lugar de destruir, apaixonando em lugar de entediar e, principalmente, impedindo que os jogos de interesses triunfem sobre a lealdade e a fraternidade. A arte, afinal, vive dessa leveza.

Precisamos ouvir mais atentamente as crianças, não só pelas coisas incríveis que elas fazem e dizem, mas pelas pessoas cada vez mais admiráveis que poderão se tornar sendo respeitadas e podendo viver livremente este trecho tão determinante de suas vidas. A ponto de não identificarem onde termina o brincar e onde começa o trabalho, e vice-versa. A ponto de entenderem como sinônimos o sucesso pessoal e o bem estar coletivo.

Que a “beleza das respostas das crianças” nos livre da crença pretensiosa de que elas sejam seres ainda vazios à espera de nossos saberes para preenchê-las, e nos ajude a entender que somos nós, isto sim, dependentes dos exemplos que elas nos dão para resgatar da mesmice nosso eu genuíno.

Tomara que o respeito e a fascinação pelo mundo mágico da infância permaneçam continuamente presentes e prioritários em nossos planos de evolução e que, parafraseando Pedro, jamais sejam relegados a uma lembrança de antigamente.

Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.