Opinião

Adeus às armas de revoluções parecidas

Os participantes do histórico ato aplaudem durante a assinatura do acordo de cessar-fogo definitivo entre o governo da Colômbia e a guerrilha das Farc, no dia 23 deste mês, em Havana, o que representa o fim da guerra no país e põe ponto final ao ciclo de luta armada na América Latina. Foto: Cepal
Os participantes do histórico ato aplaudem durante a assinatura do acordo de cessar-fogo definitivo entre o governo da Colômbia e a guerrilha das Farc, no dia 23 deste mês, em Havana, o que representa o fim da guerra no país e põe ponto final ao ciclo de luta armada na América Latina. Foto: Cepal

Por Mario Osava, da IPS – 

Rio de Janeiro, Brasil, 30/6/2016 – O acordo de cessar-fogo definitivo entre o governo da Colômbia e a guerrilha comunista das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) coloca um ponto final a um ciclo latino-americano que, na realidade, já havia acabado anos antes de começar este século.A guerrilha colombiana é um fenômeno extemporâneo, que se prolongou excepcionalmente por 52 anos, ou mais, se considerarmos os movimentos armados que deram origem às Farc, em 1964.

As delegações do governo e as Farc assinaram em Havana, capital cubana, no dia 23 deste mês, o histórico acordo que põe fim à guerra na Colômbia e aproxima a culminação do Acordo Final de paz que as duas partes negociam desde 2012. A onda guerrilheira na América Latina ocorreu entre o triunfo de Fidel Castro em Cuba (1959) e a desintegração da União Soviética (1991), combatendo ditaduras militares anticomunistas que proliferaram durante esse período, em que a região foi trincheira destacada da Guerra Fria.

Houve organizações que sobreviveram depois de 1991, como o Sendero Luminoso no Peru, e outras remanescentes em vários países, inclusive grupos novos, como a Frente Zapatista do México, surgida em 1994. Mas foram expressões isoladas e nada representativas em termos de ameaça política ou militar aos governos.A maioria dos participantes da luta armada sucumbiu à repressão ou se desmobilizou, principalmente na década de 1970.

Muitos de seus dirigentes, após sofrerem prisões e torturas por pegarem em armas, aderiram a partidos democráticos e chegaram ao poder mediante eleições.É o caso de Dilma Rousseff, eleita,pelo Partido dos Trabalhadores (PT), presidente do Brasil em 2010 e reeleita em 2014, e que está suspensa de suas funções, enquanto tramitaum processo de impeachment no Senado, acusada de fraudes fiscais.

Membro da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, Dilma foi detida em 1970 e ficou presa por três anos. A anistia política decretada pelos militares em 1979 e a posterior redemocratização do Brasil permitiram que cumprisse importantes funções em governos de esquerda até chegar à Presidência.José Mujica enfrentou 14 anos de prisão e foi ferido a tiros como militante Tupamaro, antes de passar à política e ser eleito presidente do Uruguai em 2010, pela Frente Ampla.

Outros ex-guerrilheiros ocupam ou ocuparam posições importantes em governos esquerdistas, como o vice-presidente da Bolívia desde 2006, Álvaro García Linera, e Alí Rodríguez, que ocupou os ministérios de Energia e Relações Exteriores (1999-2002 e 2004-2006) e outros cargos na Venezuela, onde já houve guerrilheiros em governos desde os anos 1990.García esteve preso entre 1992 e 1997 por ter participado de um grupo armado indigenista. Rodríguez participou de grupos guerrilheiros nos anos 1960 e 1970.

Guerrilheiros da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), em uma das montanhas de El Salvador, durante a guerra civil que viveu esse país entre 1982 e 1992. Agora o FMLN, reconvertido em um partido político, governa a nação centro-americana desde 2009 e, desde 2014, seu presidente é Salvador Sánchez Céren, um antigo comandante guerrilheiro,. Foto: Domínio Público
Guerrilheiros da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), em uma das montanhas de El Salvador, durante a guerra civil que viveu esse país entre 1982 e 1992. Agora o FMLN, reconvertido em um partido político, governa a nação centro-americana desde 2009 e, desde 2014, seu presidente é Salvador Sánchez Céren, um antigo comandante guerrilheiro,. Foto: Domínio Público

Caso único de guerrilha triunfante, além da cubana, a nicaraguense Frente Sandinista de Libertação Nacional chegou à chefia do governo com seu comandante Daniel Ortega em 1979, após derrubar o ditador Anastasio Somoza. Depois de perder a Presidência em 1990, voltou a ocupá-la em 2007.Outro presidente de passado guerrilheiro é Salvador Sánchez Cerén, de El Salvador, líder da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), que combateu os governos oligárquicos até 1992, quando negociou os acordos de paz.O FMLNchegou ao poder pelas urnasem 2009, com ojornalista Mauricio Funes, sucedido por Sánchez em 2014.

Agora é a vez da Colômbia viver o processo de incorporação de combatentes clandestinos à vida social e política. “O acordo governo-Farc interessa a todos os latino-americanos e à humanidade, como comprova a colaboração de países europeus nas negociações”, apontou Tullo Vigevani, professor de relações internacionais na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Isso se deve ao peso das Farc, “com áreas sob seu controle desde 1964, sólidas raízes sociais no campo e algum apoio urbano. O acordo não muda a tendência conservadora atual na América Latina, mas reforçará os ventos democráticos na região”, opinou Vigevani à IPS.“O processo é inovador”, inclusive em relação às negociações anteriores de paz na mesma Colômbia, acrescentou.

Em 1990, um acordo desmobilizou o Movimento 19 de Abril (M-19), protagonista de sangrentas ações urbanas, como a tomada do Palácio da Justiça em Bogotá, em novembro de 1985, que causou dezenas de mortos pela brutal reação militar. Atualmente, vários de seus dirigentes são parlamentares e um deles, Gustavo Petro, ex-prefeito de Bogotá, disputou a presidência em 2010. Outro, Antonio Navarro, foi governador do departamento de Nariño.

Os políticos procedentes do movimento tiveram um papel relevante na elaboração da Constituição de 1991, que surpreende por princípios progressistas em um país envolto por violências múltiplas e onde os conservadores concentram muito poder.Por exemplo, reconhecem às populações indígenas e afrocolombianas direitos coletivos, a territórios comunitários com autonomia e podendo eleger seus próprios representantes para Senado e Câmara de Representantes, em circunscrições especiais, um avanço que parece longe em países como o Brasil.

Mas também há uma experiência perturbadora. Foi uma tentativa trágica de superação do conflito armado iniciado em 1984, a partir da União Patriótica (UP), uma coalizão de forças de esquerda com participação das Farc, criada a partir de negociações da guerrilha durante o governo de Belisario Betancur.Seria uma forma gradual de incorporar guerrilheiros à vida legal, mas depois começou o extermínio praticado por narcotraficantes e paramilitares de direita.

Em 20 anos, estima-se que foram assassinados 6.500 militantes e simpatizantes da UP, forçando os sobreviventes a se exilarem.Na atual realidade colombiana e latino-americana, parece impossível a repetição de tais massacres. A guerra perdeu sentido, depois de matar mais de 218 mil pessoas entre 1958 e 2012 e forçar o deslocamento de 6,46 milhões até 2014, segundo o Centro Nacional de Memória.

Mas a Colômbia é uma fábrica de violências desde o Bogotazo de 1948, quando o assassinato do líder liberal Jorge Eliecer Gaitán desatou uma rebelião popular com centenas de mortos na capital, à qual se seguiu a década denominada La Violencia, entre grupos liberais e conservadores, com pelo menos 200 mil mortos.

Persistem outras pequenas guerrilhas ativas no país, embora a segunda força, o Exército de Libertação Nacional, já tenha começado as tratativas de seu diálogo com o governo.Além disso, estão armados setores paramilitares cuja desmobilização, há dez anos, foi incompleta, e operam como grupos criminosos, inclusive do narcotráfico.

O acordo com as Farc enfrenta opositores influentes, como o direitista ex-presidente Álvaro Uribe (2002-2010).É um processo mais complexo do que o de outros países latino-americanos, onde guerrilheiros desmobilizados ou derrotados puderam fortalecer os governos de esquerda, em um ciclo que também vive seu ocaso.

Antes renunciaram às suas ilusões revolucionárias e alguns, como Dilma Rousseff, se apresentam como campeões da democracia, por sua luta de morte contra ditaduras.É uma afirmação polêmica, porque a luta armada, em geral, foi feita com “um projeto autoritário, próximo do que havia de revolução e socialismo na época”, pontuou à IPS o historiador Daniel Aarão Reis, da Universidade Federal Fluminense. Envolverde/IPS