Política Pública

Deterioração institucional contamina STF

Por Mario Osava, da IPS – 

Rio de Janeiro, Brasil, 12/12/2016 – Chamado para dirimir questões cruciais na crise política, o Supremo Tribunal Federal (STF) se deixou contagiar pela deterioração institucional, cada dia mais visível no Brasil, e se converteu em outro fator de incertezas. Sua última decisão, do dia 7, por maioria de seis de seus 11 magistrados – que mantém Renan Calheiros na presidência do Senado, mas tirando-lhe a possibilidade de eventualmente substituir o presidente da República –, gerou controvérsias jurídicas e rejeição popular.

Na linha de sucessão do presidente e do vice-presidente do país estão os que exercem a presidência da Câmara dos Deputados, do Senado e do STF, nessa ordem. Mas a Constituição veta o exercício da chefia do Estado a pessoas julgadas por crimes comuns, e Calheiros enfrenta 12 processos judiciais, a maioria por corrupção, e um foi iniciado no próprio STF no dia 1º deste mês.

Sessão plenária do Supremo Tribunal Federal em que foi decidido, no dia 7 deste mês, manter Renan Calheiros na presidência do Senado, apesar de ter um julgamento aberto por corrupção, mas tirando seu direito de chegar a exercer, eventualmente, a Presidência do País. Foto: José Cruz/Agência Brasil

 

O problema, destacado por juristas, é que a faculdade de substituir o mandatário do país pertence à presidência do Senado, não ao senador que a ocupa temporariamente. A decisão do STF suprime essa prerrogativa, em uma intervenção constitucionalmente questionável em outro poder. Diante da opinião pública, sua sentença é ainda mais desastrosa. “Fora Calheiros”, foi o principal lema de protestos contra a corrupção, que reuniram dezenas de milhares de manifestantes em São Paulo e outras cidades brasileiras no dia 4.

Nas redes sociais proliferaram reações negativas à “covardia” do STF, colocado de “joelhos” diante do “poderoso” senador e inclusive acusado de conivência com a corrupção. Não se tratou apenas de manter Calheiros à frente do Senado, mas também de tolerar sua rebelião contra uma decisão desse tribunal. No dia 5, o juiz Marco Aurélio Mello decidiu tirar Renan da presidência do Senado, acolhendo o pedido do partido Rede Sustentabilidade. Julgado penalmente – foi o argumento – não poderia seguir em uma função com poder para substituir o presidente Michel Temer.

A liminar foi desautorizada no dia 7 pelo plenário do STF, mas esteve legalmente vigente durante dois dias, nos quais Renan, apoiado pela Mesa Diretora do Senado, se manteve no cargo, descumprindo a sentença judicial. Essa ilegalidade foi deixada impune pelo STF, com isso se desprestigiando perante a opinião pública e abrindo um precedente para que outros políticos ignorem as sentenças da justiça.

“Crise institucional” foi a consequência, segundo muitos juristas e analistas políticos. A decisão do STF foi política, tentando superar o confronto entre os poderes Judiciário e Legislativo. Buscou também assegurar a governabilidade. Temia-se que, com Renan fora do Senado, não ocorresse a votação sobre o ajuste fiscal, marcada para o dia 13. Para o governo é vital que seja aprovado logo o Projeto de Emenda Constitucional que limita o aumento do gasto publico nos próximos 20 anos, permitindo um teto de aumento anual equivalente à inflação do ano anterior.

O substituto de Renan seria Jorge Viana, do Partido dos Trabalhadores (PT), partido que rejeita essa proposta de austeridade fiscal, por considerar que forçaria uma redução do orçamento para saúde, educação e programas sociais. Dessa forma, a decisão do STF deve tranquilizar o mercado financeiro e outros setores que apostam em uma forte contenção do déficit orçamentário para recuperar a economia a partir de 2017.

Essa recuperação não começou neste ano, como se esperava, gerando rumores sobre a possível substituição do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, intocável até agora e do próprio presidente Temer. Retomar o crescimento econômico é considerado indispensável para sustentar o governo de Temer, de baixa legitimidade e popularidade, por emanar da destituição de Dilma Rousseff.

As turbulências políticas, alimentadas especialmente pelas investigações de corrupção, contribuem para as dificuldades econômicas, já que superá-las depende da aprovação parlamentar do ajuste fiscal e de outras medidas como a reforma da previdência social. Com um Congresso liderado por políticos como Renan, acusados ou suspeitos de participação em numerosos casos de corrupção, a instabilidade é permanente.

Já foram detidos alguns políticos, como o ex-presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, o ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e dois ex-governadores do Rio de Janeiro, além de mais de 50 empresários. Dezenas cumprem penas em liberdade por terem colaborado com as investigações. Uma quantidade estimada em mais de cem parlamentares já são ou serão investigados em razão das informações prestadas por 77 dirigentes da construtora Odebrecht, que acordou colaborar com a justiça sobre os subornos entregues em troca de contratos com o governo ou a Petrobras.

Rodeado por jornalistas, o presidente do Senado, Renan Calheiros, que, por decisão do Supremo Tribunal Federal, permanece no cargo, apesar de estar sendo julgado por essa mesma corte em um processo de corrupção. Foto: Hane de Araújo/Agência Senado

 

Esse provavelmente será o golpe de graça no sistema político desenvolvido no Brasil desde o fim da ditadura militar (1964-1985). O principal partido constituído nesse período, o PT, já foi profundamente atingido pelos escândalos que puseram fim à carreira de vários de seus dirigentes, contribuíram para a destituição de Dilma Rousseff e ameaçam o futuro de seu líder, Luiz Inácio Lula da Silva.

Agora é a vez de outros partidos que protagonizaram a recente história do Brasil, como o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), de Temer e Renan, e do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), de Fernando Henrique Cardoso e José Serra. O processo se prolonga porque a maioria dos suspeitos só pode ser investigada e processada pelo Supremo Tribunal Federal, pois possuem foro privilegiado.

Em meio a essa crise que ameaça arrasar a classe política brasileira, a justiça é gradualmente arrastada pelo redemoinho. Um movimento parlamentar, encabeçado por Renan, busca aprovar a lei contra abusos por parte de autoridades judiciais, o que é considerada uma tentativa de conter as investigações de corrupção contra os próprios legisladores.

Enquanto isso, o STF, guardião da Constituição, acumula sentenças que contrariam disposições constitucionais e são consideradas intervenções indevidas nos demais poderes. É o novo “poder moderador”, segundo o jurista Oscar Vilhena, professor de Direito na Fundação Getulio Vargas, de São Paulo.

Além da sentença mantendo Renan na Presidência do Senado, mas o vetando como eventual substituto do presidente do país, em fevereiro deste ano o STF decidiu que os réus condenados em segunda instância já podem ir para a prisão. A Constituição fixa a presunção de inocência até o “trânsito em julgado”, ou seja até o último recurso, que pode ser na terceira ou quarta instância judicial.

As discrepâncias, às vezes agressivas, entre os membros do STF ficaram mais frequentes com sua difusão pela televisão, revelando conflitos ideológicos e inclusive partidários entre alguns. O risco é de descrédito dessa instituição perante a prolongação e o afundamento da crise no Brasil. Envolverde/IPS