Opinião

Cabras e ovelhas sustentam vida rural no semiárido

Por Mario Osava, da IPS – 

Sobradinho, Brasil, 11/1/2017 – “Quando eu era criança, as chuvas eram regulares, suficientes para a pecuária, que era forte aqui. As pessoas não gostavam de criar cabras e ovelhas”, recordou José Neto da Silva Costa, camponês de 49 anos, morador dessa localidade do Estado da Bahia. Para ele, “gado” significa exclusivamente bovinos. Nada a ver com os cerca de 400 carneiros e cabras que, segundo ele, permitem que viva bem em São João, uma comunidade rural do município de Sobradinho. “Agora chove apenas dois anos em cada década, o gado não tem futuro aqui”, afirmou.


Ovelhas e carneiros conseguem se alimentar na Caatinga, bioma exclusivo do semiárido brasileiro, com sua vegetação aparentemente seca, após cinco anos de chuvas escassas. Foto: Mario Osava/IPS

 

O gado bovino, introduzido no Nordeste pelos colonizadores portugueses no século 17, serviu para uma ocupação inadequada do semiárido e “até hoje não se adaptou às condições climáticas locais”, segundo o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), que dá assessoria técnica a comunidades como São João. Na ecorregião do semiárido brasileiro, em secas como a atual, que já dura cinco anos, os bovinos são as primeiras vítimas.

Morrem muitos e seus proprietários, para evitar perdas maiores, são obrigados a vender os sobreviventes para criadores distantes, a preços baixos. Ironicamente, sofrem os danos ambientais que eles mesmos provocaram durante três séculos e meio, como devastação de florestas, degradação do solo e sedimentação dos rios, que agravaram os efeitos da irregularidade pluviométrica.

“Felizmente mudei enquanto crescia, não tenho vocação para o gado”, contou Costa, lamentando a perda de 35 cabritos no ano passado. “Suas mães abortaram por causa da sede”, acrescentou. Sua mulher, Lélia dos Santos, aproveita o leite de cabra para fazer queijo, produto de crescente demanda e considerado muito saudável. A criação de cabras e ovelhas “é a única atividade segura e bem adaptada às condições climáticas de grande parte do semiárido brasileiro”, afirma o IRPAA.


José Neto da Silva Costa em sua propriedade na Comunidade São João, onde cria cerca de 400 cabras e ovelhas. Foto: Mario Osava/IPS

 

É a garantia permanente de proteínas e renda para as famílias, que aprenderam a armazenar água e forragem para os períodos de estiagem intensa e prolongada como a atual, iniciada em 2012 e comparável à de 1979 a 1983, que deixou um milhão de mortos, segundo as estimativas. “Em lugar de forragem seca, preferi a armazenada, que oferece alimentação fresca, com mais umidade, embora exija cuidados”, explicou Costa, apontando para o silo de concreto cravado no solo onde armazena quatro toneladas de sorgo e palha agrícola picados.

O sorgo (Sorghum bicolor L. Moench), que planta desde 2005, começou a ser cultivado no Brasil durante a década de 1970 e se expandiu no semiárido por sua tolerância à escassez hídrica e por ser alimento de boa qualidade para o gado. Espécies nativas e típicas da Caatinga, bioma exclusivo do semiárido, também se incorporam cada vez mais à forragem. Mas as técnicas hídricas e forrageiras de “convivência com o semiárido”, desenvolvidas a partir de experiências locais e difundidas por organizações sociais como o IRPAA há três décadas, não contemplam grandes animais.

“Não recomendamos o gado bovino, que esgota a economia familiar. Muitas vezes vendem vários carneiros para manter um boi”, observou André Azevedo Rocha, coordenador de Clima e Água do IRPAA, que tem sede na cidade de Juazeiro, norte do Estado da Bahia, a 50 quilômetros de Sobradinho. A criação de pequenos e médios animais é uma das formas de convivência incentivada pelo movimento Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), que dissemina um novo modelo de desenvolvimento rural e reúne três mil organizações não governamentais, como o IRPAA, instituições religiosas, sindicais e comunitárias do Nordeste.


Lélia dos Santos empacota queijos feitos com leite das cabras que são criadas por seu marido, José Neto da Silva Costa. O queijo tem um crescente mercado de consumidores que se dispõem a pagar mais por produtos saudáveis. Foto: Mario Osava/IPS

 

O aprendizado com secas desde o século passado fortalece a recomendação da ASA, mas muitos camponeses resistem à mudança. “Têm mentalidade de fazendeiro, querem vacas como patrimônio”, apesar do consumo excessivo de água e recursos naturais para sua criação, lamentou Carlos Campos, coordenador da ASA no Estado do Piauí, um dos dez Estados com territórios semiáridos.

“É difícil romper a tradição”, reconheceu Francisco Edilson Neto, de 59 anos, ex-presidente e atual tesoureiro do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Apodi, dono de 30 vacas leiteiras que fornecem a matéria-prima para que seus quatro filhos produzam ricota. “Os camponeses só se sustentam com diversidade produtiva”, afirmou.

Gildete da Silva, de 47 anos e três filhos, já se convenceu de que “criar bode e ovelha é melhor. Alimentar uma vaca custa mais do que duas ovelhas, que, além do mais, se reproduzem em cinco meses, e os bodes crescem rápido”, afirmou. Mesmo assim, “quando chover, ficaremos apenas com uma vaca e poucos bezerros para engordar”, vendendo as sete reses restantes que têm atualmente, acrescentou.

Ela conta com três cisternas, uma para guardar água de chuva para beber, outra para uso doméstico e a terceira, maior, também para guardar água de chuva, mas destinada à produção, animais e pomar. Suas hortaliças se perderam por causa da “quentura” do Sol, até que conseguiu comprar e instalar uma tela negra para proteger a horta da excessiva radiação solar. Ela também recebe água de um poço coletivo que abastece sete famílias da Comunidade Julião, onde vive há 18 anos, perto da cidade de Ouricuri. “Os animais bebem muito”, contou.

Ali se instalou com sua família em uma propriedade de 40 hectares, depois que suas terras anteriores foram inundadas para formar a represa Algodão, hoje totalmente seca, a poucos quilômetros de seu novo lar. Seu vizinho Adelmir Alves da Silva, de 51 anos e quatro filhos, se arrisca a ter 20 bovinos, mas os distribui entre suas duas propriedades. Na Comunidade Julião conta com quatro cisternas, além do fornecimento proporcionado pelo poço comunitário, água suficiente para também criar 55 cabras em um terreno de 76 hectares.

Em uma espécie de trincheira coberta por plástico preto, armazena capim-elefante, a vegetação que conseguiu colher. “Não é muito nutritivo, mas é abundante, bom para sobreviver, não para engordar”, explicou Alves. Outras alternativas, o sorgo e a palma forrageira (Opuntia fícus-indica Mill e Nopalea Cochenillifera Salm-Dyck, as duas espécies mais cultivadas), se perderam por causa da seca e de uma praga, respectivamente.

O problema com os bodes é a necessidade de cercas fortes, para que não fujam, afirmaram Alves e Gildete, que afirmou que “só quatro fios de arame não são suficientes”. Mais de 200 quilômetros ao sul, Costa se queixa dos parques de energia eólica construídos em montanhas próximas. “Expulsaram as onças (Panthera onca, maior felino americano) que desceram a serra e comem nossos animais”, lamentou.

Mas sua comunidade necessita de menos cercas. A pecuária é feita na terra coletiva sob gestão da Associação Fundo de Pasto Agropastoril de São João, que soma 2.643 hectares de pastagem aos 40 hectares de propriedade privada de cada uma das 22 famílias ali assentadas há quatro décadas. O Fundo de Pasto comum é uma tradição em mais de mil comunidades da Bahia, que camponeses e o IRPAA procuram legalizar. Além de alimentar melhor os animais, é a melhor forma de preservar a Caatinga, afirma o Instituto. Envolverde/IPS