Na contramão do egoísmo, uma garota se desprende, literalmente, da conversa animada com seu grupo e caminha até a esquina, ombro a ombro com um idoso, a fim de lhe mostrar melhor o endereço que ele estava procurando. No metrô, uma mulher faz questão de dar lugar à uma jovem que tenta, mesmo em pé, resolver algumas questões escolares numa apostila. Na sala de espera de uma clínica, um grupo de pessoas concorda em passar à frente dos demais uma senhora que apenas comentava com outras sobre seu temor de ter ou não esquecido o forno ligado em casa.
Claro que existem dramas piores pedindo atenção ao nosso redor, mas em tempos de tanta intolerância, cenas simples assim até emocionam, talvez por nos lembrar que o amor também é simples e, ao mesmo tempo, indestrutível por ser, enfim, a matéria prima da paz.
No clássico O Jardim Secreto, de Frances Burnett, duas crianças descobrem o esconderijo da chave para um velho jardim abandonado. Ao cortarem, então, o galho de uma das árvores aparentemente mortas, descobrem que a seiva delas permanece intacta. A partir dali, as crianças “curam” o jardim com sua presença, com sua alegria e com seus cuidados até que ele, enfim, novamente floresce numa exuberância de cores.
Não fosse essa interferência doce e súbita do amor nos cenários mais ingratos, há muito, nossa raça teria perdido a razão de se chamar humana. A poesia, a literatura, as histórias, a música, as artes, a ciência, o brincar, o riso solto das crianças e a própria esperança nos dão pistas dessa imortalidade do amor e dos lugares onde ele se aninha, ao mesmo tempo que nos ajuda a compreender também sobre os lugares onde ele se esconde à espera de uma oportunidade de florescer novamente.
No fundo dos corações mais ressequidos, ele provavelmente se encontra sufocado, seja por abandonos, mágoas, ausências, violências, abusos e negligências, em sua maioria ocorridos na tenra infância. Diante do mais hostil ser humano, lembrar do bebê indefeso e da criança frágil que ele foi um dia, com as mesmas necessidades e anseios de outras tantas crianças, pode, pelo menos por um instante, tocar nossa emoção e abrandar nosso julgamento sobre ele.
Nenhuma criança nasce para ser má. A primeira expectativa de todas é a de serem bem recebidas, de um colo amoroso, de um leite quentinho e, depois, de voltas de cavalinho em ombros nos quais possam confiar, espaços para brincar, boa educação e assistência familiar e social adequadas. Para que o amor cresça e dê frutos dentro delas, todo jardim da infância deve ser equipado assim. Quase impossível imaginar que alguém criado dessa maneira possa se tornar cruel algum dia.
Governo, justiça, comunidade e família, somos todos responsáveis pela sobrevivência e bem-estar de cada criança, seja por nossa humanidade ou pela simples constatação inteligente de que honrar a infância e fundamental para a preservação de nossa espécie e para o futuro do planeta. Cuidar e proteger todas as crianças deve ser a mais imprescindível das metas de desenvolvimento de cada país, de cada cidade e de cada sociedade que sonha verdadeiramente com um mundo de paz e de fraternidade.
Quem puder mais, faça mais pela infância, criando leis, políticas públicas, direcionando verbas prioritárias à infância, combatendo as desigualdades, denunciando abusos e defendendo o direito delas a uma educação com qualidade e liberdade e de brincar em segurança. Quem puder menos, dê o que o dinheiro não compra: uma palavra, um elogio, um carinho, um abraço, uma denúncia sobre violência ou negligência. E que de todos emane a compreensão de que a chamada “criança difícil” não existe, o que existe são as dificuldades que ela enfrentou ou enfrenta. Um pássaro ferido não voa, e reage arisco mesmo quando se quer ajudá-lo.
Como lembra o educador e escritor, Severino Antonio, “Para a criança, tudo tem vida, tudo tem alma”, e isto certamente equivaleria dizer que, para um adulto que viveu plenamente sua infância, a vida do outro dá sentido a sua própria vida e deve, portanto, ser valorizada e aceita. Cada criança conta para a humanidade, não por quem ela possa vir a ser, mas pelo que ela já é hoje: a fase onde a vida se apresenta em sua forma mais humana e onde o amor flui, brinca e sorri de corpo inteiro.
(*) Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Alana.