Diz a lenda que, para manter seu filho pequeno ocupado enquanto trabalhava, tentando elucidar os problemas do mundo, um cientista recortou, de uma revista, a página de um mapa-múndi, separando os países e propondo à criança que o remontasse com fita adesiva. Em menos de uma hora, o garotinho surpreendeu o pai com o mapa reconstituído, mesmo sem qualquer noção ainda sobre a geografia do planeta. Respondendo ao espanto, a criança explicou que, antes que o pai recortasse o mapa, havia visto no verso da página a foto de um homem. Por ser-lhe mais familiar tal figura, reconstituiu o mapa pelo verso, concluindo: “Quando consegui consertar o homem, virei a folha e vi que havia consertado o mundo”.
É certo que não necessitamos nem de metáforas ou de estatísticas para saber que o mundo em si não tem grandes problemas, exceto aqueles que nós lhe causamos. Consertar as pessoas parece ser mesmo o melhor caminho, embora a realidade nos mostre que este caminho não tem sido fácil. No entanto, existem atalhos, e um deles é a infância.
Podemos começar nos lembrando de como éramos quando crianças, do quanto gostávamos da vida ao ar livre, do quanto nos era difícil ver uma relva verdinha sem logo nos estirarmos nela para fitar infinitamente o céu, acompanhando os desenhos das nuvens, imaginando outros planetas, sentindo a própria respiração, os cheiros das plantas ou fazendo planos para cavar aquele poço tão fundo que desembocaria em algum quintal do Japão. Ao conversar até com as pedras e entender que tudo a nossa volta tinha vida e sentimentos, nossa empatia funcionava em sua melhor potência.
Compreender a infância como essa gigantesca reserva de humanidade para o futuro do planeta já nos transforma bastante. Com o exemplo das crianças, entendemos a inutilidade do ódio. Compreendemos o quanto é maior o valor de uma praça do que o de um edifício de luxo construído em seu lugar. Perdemos o sono só de imaginar um golfinho se afogando com uma embalagem plástica flutuando no mar. Entre olhar a paisagem pela vidraça de um carro blindado à prova de assaltos e ir para a escola chutando pedriscos pelo caminho junto com outras crianças, sabemos que elas prefeririam não ser reféns do poder aquisitivo.
Claro que, na prática, somos impelidos a justificar que são apenas pontos de vista de crianças que nada entendem ainda sobre a seriedade da sobrevivência. Além do mais, negar ou impedir os progressos que temos experimentado com velocidade cada vez maior seria, no mínimo, injusto em relação à inteligência humana. No entanto, temos que admitir que muito dessa evolução tem embaralhado bastante o mapa do mundo brincante e fraterno que traçamos um dia no vai e vem do balanço.
Mas, quando algo não sai como desejamos, é comum querermos voltar ao ponto onde nos perdemos para tentar mais uma vez. Assim, embora não possamos voltar no tempo, podemos reconstituir o mapa da desigualdade pelo lado da consciência, garantindo que as crianças cresçam em segurança e livres para voar na imaginação e na alegria de contar umas com as outras. Podemos impedir que a ganância comercial convença os pequenos de que a felicidade é abrir uma lata de refrigerante e que ter é melhor do que ser. Podemos denunciar abusos e exigir o cumprimento de leis de proteção à infância, à maternidade e à paternidade. Podemos compreender que, com raras exceções, os questionamentos das crianças e suas recusas em aceitar um aprendizado padrão são sinais de saúde em lugar de um motivo para a medicalização. E podemos entender, enfim, tal como um Mia Couto que “a infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar”.
(*) Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Alana.