Se a relação entre literatura e realidade é visceral, a relação entre literatura e políticas públicas para a educação também o é. São incontestáveis os aportes culturais que a literatura traz para toda a sociedade e especialmente para os estudantes.
Ultimamente, dois atos inusitados, um em âmbito administrativo e outro em âmbito judicial, geraram muita polêmica no país: o primeiro foi a recomendação, oriunda do Conselho Nacional de Educação (CNE), de retirada da obra de Monteiro Lobato das escolas públicas por não “se coadunar com as políticas públicas para uma educação antirracista”. A Monteiro Lobato impingiu-se a pecha de incitar o preconceito contra os negros, principalmente a partir da personagem Tia Anastácia, que, dentre outras passagens da obra do autor, é descrita como “uma macaca de carvão”. A obra, lançada nas mãos dos leitores infantis, explodiria como uma bomba disseminadora de preconceito em relação ao negro. O parecer do CNE, embora não tenha sido aprovado pelo MEC, é, independentemente disto, e por si só, muito polêmico.
O segundo caso provém de uma decisão liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo, de 18 de novembro de 2010, que proibiu a distribuição nas escolas da rede pública estadual paulista da obra, embora recente, já clássica, Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, uma coletânea primorosa de textos curtos, em formato de contos, retratando a evolução artística do gênero nos últimos cem anos por meio de uma miríade riquíssima de autores nacionais. Esta decisão judicial é baseada no fundamento de que a obra coletiva conteria contos com “elevado conteúdo sexual, com descrições de atos obscenos, erotismo e referências a incestos”, impróprios para estudantes entre os 11 e 17 anos – por isso a proibição de que verbas públicas fossem dirigidas para a aquisição da obra para as escolas estaduais.
Importante salientar que nenhuma das duas decisões proíbe a circulação das obras, mas tão somente desautorizam que o Estado, de forma oficial, adquira tais livros e os distribua livremente aos seus alunos como uma política estatal de educação, nos âmbitos federal e estadual, respectivamente. As obras, contudo, continuam a ser comercializadas sem restrições, inclusive para os adolescentes que podem pagar por elas, o que, à evidência, é muito distinto de uma censura geral e irrestrita.
Porém, a postura estatal não está livre de questionamentos, pelo contrário. Qualquer limitação do acesso à literatura é, por si só, condenável. Quando a restrição atinge alunos de escolas públicas, que na realidade brasileira são os mais carentes, o problema central desta limitação não está mais restrito somente ao conteúdo das obras – as quais continuam sendo autorizadas para o público que pode pagar por ele –, mas sim de acesso à cultura e lazer – porque literatura é também (ou sobretudo?) diversão – dos mais carentes de conhecimento.
Antonio Candido, o maior crítico literário brasileiro, defendeu, em um escrito, o direito à literatura, sustentando que esta é instrumento de efetivação dos direitos humanos, na medida em que os textos literários servem para a formação da personalidade do leitor, humanizando-o, atuando também como arma no combate contra a desigualdade e a própria violação de direitos humanos.
Privar o estudante/leitor pobre, da rede de ensino público, de ter acesso a Monteiro Lobato ou aos contos clássicos relacionados no volume com restrições é, em última análise, reforçar a linha divisória entre uma literatura para os pobres e a literatura para os ricos descrita por Antonio Candido, pois as referidas obras, por não sofrerem censura, continuarão a ser comercializadas e acessíveis a quem puder pagar por elas.
E pior: as escolhas públicas no que toca às obras literárias, seja a do TJSP, seja a do CNE, contribuem para mascarar ainda mais a ausência de efetivas e reais políticas públicas substanciais na área da educação. Com tais medidas, o Estado brasileiro prefere continuar sem enfrentar os problemas sociais retratados nas referidas obras, a partir de uma perspectiva crítica e fundada nos princípios da República Federativa do Brasil, com vistas à promoção de radicais alterações na estrutura social, por meio, sobretudo, da educação e da literatura.
Ao invés de ocultar dos jovens leitores a realidade retratada – e certamente nunca defendida – por Monteiro Lobato, por que não fortalecer, por meio de práticas reais, um ensino público voltado para a reconstrução histórica da violação aos direitos dos negros em mais de 500 anos de nação brasileira? Ações afirmativas nesse sentido contribuiriam muito para alcançar esse objetivo. Ou por que continuar a esconder a sexualidade infantil e juvenil por trás de uma visão conservadora e moralista de família e de escola, ao invés de instituir uma política pública de sexualidade para jovens e adolescentes, pautada em parâmetros contemporâneos e problemas brasileiros concretos?
Qualquer política pública educacional séria e bem intencionada utilizaria de maneira criativa os recursos da literatura para explorar a realidade brasileira e tentar subvertê-la, em prol de uma sociedade mais igualitária, garantidora de direitos fundamentais, mais fraterna e especialmente com sentido crítico mais aguçado.
As escolhas feitas pelos agentes públicos estão muito longe de criar um index inquisitorial tal como na Idade Média, proibindo todo e qualquer acesso a certas obras. Menos mal. Nem por isto tais políticas estão livres de sérias críticas. A limitação de leitores atingiria o público mais carente de literatura, que, por falta de recursos econômicos ou mesmo de estímulo, teriam na biblioteca da escola pública acesso a verdadeiros clássicos da literatura nacional. E mais grave: desfoca a priorização das políticas públicas na área da educação, que poderia ser pautada no combate à desigualdade racional e à absoluta ausência de diretrizes para uma educação sexual, voltando a atenção de todos para falsos problemas, perdendo-se a chance de se enfrentar nas escolas públicas, na fase de formação do estudante brasileiro, por meio do incentivo à leitura e da reflexão crítica das crianças e adolescentes, temas cruciais para a construção de um país mais digno.
* Camilo Zufelato é professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
** Publicado originalmente no Jornal da USP.