Ideais educacionais são mais frequentemente objetos de polêmicas e de lutas acirradas do que de consensos generalizados. Estranhamente, contudo, a noção de que a importância da educação reside em seus efeitos no desenvolvimento econômico do país e no êxito profissional do indivíduo parece ser unanimemente aceita em nossa sociedade. Nessa visão dominante, os esforços pela universalização e melhoria da qualidade da educação se justificariam em função dos benefícios econômicos que dela retiramos.
A revista semanal de maior circulação no Brasil, por exemplo, tem publicado nos últimos anos diversas matérias de capa sobre a importância da educação. Nelas, os países asiáticos são reiteradamente citados como evidências da ligação entre os investimentos em educação e a prosperidade econômica de um país e entre a escolarização e o aumento da renda e da empregabilidade de um indivíduo. Numa fórmula relativamente simples: a educação é um investimento, uma espécie de “capital humano”, que gera prosperidade e renda para o país e seus habitantes.
É importante salientar que esta não é uma visão restrita à grande imprensa. Sindicatos, políticos e professores parecem aceitá-la como a principal justificativa da importância da educação. Esta adesão generalizada parece desaconselhar qualquer sorte de questionamento. No entanto, ainda que se possa admitir a existência de alguma correlação entre escolaridade e desempenho econômico, tais pressupostos merecem, no mínimo, mais reflexão e debate. Em primeiro lugar, porque, se é verdade que em certos países asiáticos houve, simultaneamente, aumento da escolarização e da prosperidade econômica, não é menos verdadeiro que países como a Argentina e o Uruguai tiveram, por décadas, índices de escolaridade melhores do que os dos Estados Unidos, sem que isso resultasse em uma economia mais sólida ou produtiva do que a deste último país citado. Por outro lado, se o aumento da escolaridade tivesse um reflexo imediato na empregabilidade da população, como explicar que o índice de desemprego na Espanha, que conheceu uma ampliação significativa da escolarização de sua população na segunda metade do Século 20, seja maior do que no Brasil?
Na verdade, ao aumentarmos o índice geral de escolaridade da população, simplesmente colocamos o patamar de exigência para o emprego em um nível mais alto: uma mesma vaga para a qual se exigia quatro, hoje se exige oito anos de escolaridade; mas é a mesma e única vaga. Os remédios contra o desemprego ou a estagnação econômica não se encontram prioritariamente nas políticas educacionais, mas nas econômicas. É possível aumentar a escolaridade da população de uma nação sem necessariamente nela reduzir a pobreza ou a desigualdade econômica. Também é possível desenvolver-se tecnologicamente a partir da formação intelectual de uma elite restrita, mas bem preparada.
Isto significa que menosprezamos o valor da educação? De forma alguma. Simplesmente, implica a necessidade de deslocarmos sua importância para outros aspectos da vida social. É evidente que a expansão da escolarização pode trazer algum efeito econômico. O problema com este tipo de visão é a redução do valor cultural de uma prática social a um único – e questionável – benefício econômico imediato. Ao centrar-se nesses supostos ganhos, tal visão retira da educação seu principal sentido público: a iniciação de jovens e crianças num universo cultural constituído por um complexo conjunto de realizações históricas que marcam a identidade de um povo.
Cada professor alfabetizador, por exemplo, ao ensinar uma criança a ler e escrever, a ela torna disponível uma ferramenta intelectual, uma criação da cultura humana que é pública, por ser uma realização histórica de nossos antepassados, cujo ensino colabora para sua perpetuação e renovação. Assim concebida, a educação significa a iniciação em fragmentos escolhidos de um legado público de realizações culturais socialmente valorizadas. Eventualmente, tal legado pode ter uma utilidade pragmática na vida privada e econômica. Mas, seguramente, seu valor não se esgota ou se justifica por isso. Qual o valor prático da poesia? Se for nulo, seria o caso de abolirmos essa forma de expressão cultural dos currículos escolares?
Educar uma nação não se reduz a preparar indivíduos para um mercado de trabalho. Significa, antes de tudo, inserir os novos em um mundo cultural estruturado por valores, crenças, comportamentos, conhecimentos e linguagens que consideramos valiosos porque são frutos de tradições culturais e realizações históricas que fazem de um indivíduo um ser capaz de pertencer a uma comunidade. Um cidadão e não um competidor no mercado de trabalho.
* José Sérgio Carvalho é mestre e doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP), onde atualmente leciona em programas de graduação e pós-graduação. Atua na área de formação de professores em Direitos Humanos, com projeto vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos. É membro da Cátedra USP/Unesco de Educação para os Direitos Humanos e do Grupo de Estudos em Temas Atuais da Educação, ambos sediados no Instituto de Estudos Avançados da USP.
* Publicado originalmente no Blog Acesso e retirado do site Mercado Ético.