Mauricio de Sousa conta como adaptou a Turma da Mônica às novas formas de comunicação e aos comportamentos de crianças e jovens.
Já faz mais de 50 anos que o então repórter policial da Folha da Manhã resolveu trocar a vida de jornalista pela produção de histórias em quadrinhos, sua grande paixão desde criança. Poucos casos deram tão certo. Hoje, aos 75 anos, Mauricio de Sousa é o grande expoente desse ramo no Brasil. Os personagens de sua grande criação, a Turma da Mônica, fazem parte do cotidiano – e da lembrança – de crianças, adolescentes e adultos.
Em maio, Mauricio tornou-se o primeiro quadrinista a ser empossado pela Academia Paulista de Letras. O prêmio chega no momento em que o autor passa por um processo de adaptação de seus personagens ao mundo atual das HQs, com a versão adolescente da Turma da Mônica. “A infância mudou muito, está bem mais precoce. Então temos de sofisticar a comunicação junto a esse público”, afirma. A Turma da Mônica jovem, que já ultrapassou 30 edições, é sucesso de venda e tem uma novidade: Mônica e Cebolinha assumem um namoro, depois de um tão esperado beijo. “As pessoas pedem mais, mas vai parar por aí, porque a Mônica é minha filha”, diz, rindo. Mas adianta: “Vai seguir, claro, o que acontece naturalmente com os jovens, mas vai demorar”.
Nesta entrevista, por telefone, Mauricio de Sousa conta como viu as mudanças da infância e adolescência que aconteceram nas últimas décadas e como foi adaptando sua linguagem. Ele sugere também algumas formas de ler quadrinhos na escola e revela, com bom humor, uma de suas aspirações: “Calvin e Haroldo é a história que eu gostaria de ter criado”.
Carta Fundamental: O que mudou entre o leitor de Turma da Mônica há 40 anos e o de hoje?
Mauricio de Sousa: Bem, a criança está mais apressada em virar adolescente. Antigamente, atingia-se essa fase aos 14-15 anos. Hoje se é pré-adolescente com 8 anos e adolescente aos 10. Consequentemente, você tem de encarar que não podemos mais falar com garotos de 10 anos da maneira como falávamos. É como se fosse um pequeno adulto. Não dá mais para usar uma linguagem que remeta a castelinhos de fadas e princesinhas. Mostramos agora a realidade da vida numa formatação suavizada. E também sofisticaram-se as formas de comunicação, ela chega mais fácil. Então temos de sofisticar a informação e simplificar a comunicação.
CF: Qual foi o ponto da sua carreira em que você percebeu que tudo iria dar certo?
MS: Quando procurei a redação, eu o fiz para desenhar, mas não consegui. Havia vaga para reportagem policial da Folha, onde fiquei por cinco anos. Mas não esquecia os desenhos. Fiz amizade com os chefes do jornal e pedia a eles para me fornecerem todo o material de quadrinhos americanos, para estudá-los. Chegou um tempo em que eu achava que estava com informação suficiente para tentar alguma coisa. Fiz a minha série do Bidu e apresentei ao editor-chefe, que gostou. Virei só desenhista e passei a adaptar tudo o que eu estudava à realidade brasileira.
CF: Quais foram os artistas que inspiraram sua carreira?
MS: Foram muitos. Will Eisner foi meu -mestre na arte de ousar fazer quadrinhos sem a preocupação de respeitar uma lógica de criar sempre a mesma coisa. O personagem dele é sempre bem construído, mas as histórias viravam-no de cabeça para baixo. Havia histórias em que o personagem principal não aparecia. Eu recortava histórias do Eisner, era fanático. Depois tem outros: o Ferdinando (personagem criado por Al Capp-), que fazia uma sátira bem mordaz da sociedade americana por meio de um caipira, uma espécie de Chico Bento adulto. Outro era o quadrinista Tereré, que fazia a caricatura do Príncipe Valente. Havia também o Brucutu (do americano Vincent T. Hamlin), que me inspirou a criar o Piteco. Havia bom material gráfico na década de 1940 na Disney, embora esta fosse um pouco cor de rosa demais. E, posteriormente, houve Calvin e Haroldo (do americano Bill Waterson), que é a história em quadrinhos mais avançada do mundo. É a que eu gostaria de ter feito.
CF: Por quê?
MS: Sim, porque é moderno demais. Eu queria ter essa ideia, mas criaram antes (risos).
CF: Hoje temos o mangá dominando o mercado. Há quem o critique pela estética, mas há quem diga que é impossível ignorá-lo. Qual sua opinião a respeito?
MS: Quando alguma manifestação artística faz sucesso é porque há um nicho. A história em quadrinhos americana a partir dos anos 1970 começou a repetir fórmulas. Os mangás aproveitaram-se disso. Nosso desenho no Brasil é do lado americano. O mangá veio para estabelecer algumas formas gráficas que vão permanecer e se incorporar à história dos quadrinhos. Fizemos a Mônica Jovem, que incorpora os dois estilos.
CF: Podemos dizer que a história em quadrinhos americana está em decadência?
MS: Agora estão em processo de rejuvenescimento. Curiosamente, isso está nascendo de quadrinistas brasileiros, alguns deles estão entre os melhores do mundo. Mike Deodato, da Paraíba, que faz super-heróis, é um deles. O que está havendo é uma mestiçagem entre os estilos japonês e o americano.
CF: Há uma mudança de status nas HQs, com várias edições de clássicos da literatura nessa versão…
MS: Exatamente no Brasil vemos uma mudança de patamar. Se antes você só as encontrava nas bancas, hoje as vê nas livrarias em versões de grandes obras da literatura.
CF: As HQs também podem ser usadas em sala de aula porque têm uma linguagem que junta texto e imagem. Como o senhor enxerga o uso delas nesse ambiente?
MS: Vejo pelo material que dezenas de editoras que nos solicitam, dentro e fora do Brasil, trechos de historinhas para publicar em livros didáticos. Em 2010, estivemos em 480 livros didáticos. Fora o nosso projeto que utiliza a Turma da Mônica na pré-alfabetização chinesa, que deve atingir 180 milhões de estudantes. E com uma particularidade: são muito utilizados via web, uma vez que o governo chinês não quer usar papel com tanta gente. São HQs, pequenos filmes, desenhos, um material completo que estamos começando- a utilizar também aqui no País.
CF: O senhor voltou a investir em novas mídias?
MS: Sim, acabei de criar a Mauricio de Sousa- –Produções Digitais.Trabalhamos em desenhos animados em 3D. Começa com o Penadinho, Horácio e, em seguida, com a Turma da Mônica Jovem em 3D no sistema que foi usado no filme Avatar. Vai ser para a televisão e, posteriormente poderá ir para o cinema. E o importante disso é que pensamos em ter a educação como nosso maior cliente, abrindo caminho para o consumo de livros e de cultura. Tudo o que tiver nosso nome passará por educação daqui para a frente.
CF: A Turma da Mônica Jovem está discutindo- inclusive sexualidade na adolescência. Houve quem o criticasse alegando apelação. Como entendeu as críticas?
MS: Bem, eu tenho dez filhos espalhados por quase 50 anos. Aprendi a conviver, dialogar, enfrentar e ajudar a solucionar os problemas em cada uma das adolescências que passaram por meus olhos e meu coração. Nenhum pai pode ignorar os momentos de dúvida no nascimento da sexualidade dos filhos. O que temos de fazer não é suavizar, mas achar a forma certa de falar sobre o assunto. Hoje uma criança de cinco anos pode fazer perguntas cabeludas que têm que ter uma resposta. Então procurei responder às críticas dizendo que estamos fazendo uma coisa séria com muito conhecimento de causa. Quando coordeno minha equipe, realmente acho que minha vivência e de minha equipe ajudam muito, inclusive de forma educacional, até para adultos que têm dúvidas.
CF: E o mesmo vale para o personagem Caio, de Tina, que tudo indica ser um personagem homossexual…
MS: Aí houve exagero. Ninguém falou nada que havia um personagem homossexual na história. Foi uma interpretação dos leitores ao mesmo tempo que foi uma tateada para ouvir reações. E o público reagiu muito mal, violentamente. Não podemos ainda tratar de alguns assuntos da maneira como gostaríamos. Para evitar problemas, porque temos contratos e não podemos enfrentar uma parte do público, mesmo que minoria, eu digo que não podemos levantar bandeiras em nossos produtos editoriais. Mas se está passando uma bandeira em nossa sociedade, daí vamos. Cada coisa a seu tempo. De vez em quando testamos alguma coisa.
CF: A homossexualidade será tocada?
MS: Eu diria que o futuro a Deus pertence. Vamos ver como a sociedade caminha e vamos desenhar a sociedade com humor, leveza, entretenimento e educação. Houve transformações no passado. Se há 30 anos falássemos em divórcio, iriam queimar a revista em praça pública. Hoje, o Xaveco é filho de pais divorciados. Houve meia dúzia de reclamações suaves e ele está lá estabelecido, com pais bem resolvidos.
CF: Agora Cebolinha e Mônica estão namorando. Então pararam de brigar?
MS: Não, agora que estão brigando mesmo! A edição 34 da Mônica Jovem tem meio milhão de exemplares de tiragem. O povo sempre pede mais, então agora está aí, estão namorando. Mas vai parar por aí, porque a Mônica é minha filha (risos). Vai seguir, claro, o que acontece naturalmente com os jovens, mas vai demorar um pouquinho.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.