Economia

Existe uma cidadania que se exerce por meio do consumo?

Por Samyra Crespo, especial para a Envolverde –

Anúncio do McDonnald’s de que vai abolir ofertas de brinquedos de plásticos em seus lanches infantis sacode o mercado e gera dúvidas 

O chamado “consumo sustentável” ou consciente (exercido por meio de escolhas seletivas e voluntárias) é um tema bem complexo.

Vou tentar desbastá -lo em dois textos consecutivos. Meu objetivo é distinguir ações individuais de ações massivas, de grande alcance, e o papel das empresas e dos agentes públicos.

Tem como motivação o anúncio da maior rede fast-food do mundo, o McDonnald’s – em banir os brinquedos de plástico do seu “marketing de incentivo”- que atraía milhões de jovens e crianças para seus lanches acusados de pouco saudáveis. Em muitos países a prática de induzir crianças a consumir por meio de “recompensas” é proibido.
Mas meu intento é ir além desse caso específico e olhar para o quadro maior onde esta iniciativa se insere.
Para começar, ou complicar, o consumo é tudo, abarca todos os domínios da nossa vida. Além dos produtos (casa, comida, vestuário, mobilidade e utilidades), estende-se aos bens imateriais: o nosso tempo, o lazer, entretenimento, educação. Também inclui os serviços ecossistêmicos (muitos já precificados) como água, ar, solo para cultivar.

Você acorda, respira e está consumindo um ar puro ou poluído. Abre a geladeira e está consumindo alimentos, saudáveis ou não. Vai à garagem e pega o carro, ou a bike, ou o ônibus e está consumindo. Do berço ao túmulo somos consumidores.

O ato de consumir pode ser por hábito, como dissemos e automático, ou pode ser seletivo, a partir de escolhas que se se faz por motivações pessoais ou coletivas, não só por necessidade.

A este consumo examinado, decidido segundo uma motivação que pode ser política ou filosófica chama-se consumo consciente.

Não predatório ao meio ambiente, não prejudicial à saúde, ético em termos sociais. Quanto mais examinado mais o consumo pode tornar-se prescritivo. Esta é uma tendência forte. Todo o movimento, internacional, que milita hoje em dia pela saúde e bem estar animal e recomenda a redução do consumo de carne vai nesta direção.

Como você percebeu até aqui o tema é tão amplo e abrangente que nos obriga a fazer recortes.

Vou começar distinguindo o “consumo de nicho” do “consumo de massas”.

Um exemplo do consumo de nicho é a demanda por produtos vegetarianos e veganos. Também se encaixa nesta categoria a comida orgânica, por não ser ainda barata nem acessível a todos.

É certo que o mercado de orgânicos ou “livre de agrotóxicos” (coisas diferentes, aliás) cresce vertiginosamente no mundo e com algum alento no Brasil.

Mas os alimentos convencionais, não orgânicos e processados industrialmente, são a maioria.

Quem adota um estilo voluntário de vida simples, ou saudável, ou alternativo é em geral a classe média, celebridades, “tribos” urbanas quem têm renda que lhes permitem escolher.

A maioria dos consumidores é submetida ao piloto automático do hábito, às restrições do bolso e ao marketing agressivo das empresas que produzem aquilo que consumimos. Existem milhares de estudos mostrando a manipulação de aspirações e desejos dos consumidores pelos institutos que assessoram as empresas em sua propaganda.

Também contam as tradições culturais como as “cozinhas regionais” e o hábito de se alimentar com itens calóricos mas com poucos nutrientes.

Por isso são necessárias políticas públicas indutoras de consumo consciente ou sustentável.

Casos emblemáticos são as reduções exigidas por autoridades de saúde às empresas alimentícias de açúcar, sódio e gordura hidrogenada, respectivamente em refrigerantes, salgados e biscoitos, comuns nas dietas de crianças e jovens.

Pressão alta, diabetes e obesidade são alguns dos efeitos colaterais da comida conhecida como junkyfood. A linha final são doenças incapacitantes e a super ocupação dos hospitais públicos.

Olhemos com mais detalhe, a título de exemplo, o caso dos refrigerantes. Há 60 anos o Brasil era ainda bem rural e o hábito era beber refrescos: sumo da fruta diluído com água e açúcar, com um pouco de gelo para amenizar o calor.

Os refrigerantes chamados “soda” por causa do gás, só eram encontrados nas cidades e poucas marcas circulavam.

Com o crescimento exponencial da urbanização adotou-se massivamente o consumo dos refrigerantes. A propaganda encarregou-se de ampliar seu significado: na festa, na praia, na mesa da família. Das garrafas ou latas pequenas passamos às grandes, à ciranda dos pets e ao excesso. Nos anos 80 começa a redescoberta dos sucos de fruta, considerados mais saudáveis, mas agora são oferecidos adoçados e engarrafados. Vem a onda do zero açúcar e do light – consumir sem culpa. Nas décadas seguintes, ainda por razões de saúde, cresce a tendência por sucos servidos in natura.

Vemos por esse exemplo que um determinado padrão de consumo não é cláusula pétrea. É historicamente condicionado e socialmente legitimado. Ou não. Em resumo, hábitos podem ser mudados e em muitos casos devemos alterá -los para nossa própria segurança ou bem estar.

As perguntas que ficam para o próximo texto são: como reunir políticas indutoras de novos padrões de consumo em ações que realmente tenham impacto? Como nos tirar da zona do perigoso marasmo do consumo predatório ou induzido pela propaganda?

Para ser sustentável basta reduzir o nosso impacto ambiental?

Banir plásticos torna o McDonnald’s mais sustentável?

Quem acha esse debate espinhoso esquece que sem os espinhos não teremos rosas.

Assim é.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

 

 

Este texto faz parte da série que escrevo semanalmente para o site da Envolverde/Carta Capital sobre o ambientalismo no Brasil

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