Bioeconomia é um valor ético e não um setor econômico
Ricardo Abramovay* – Um dos mais frequentes e nefastos equívocos sobre os rumos do crescimento da Amazônia consiste em confundir bioeconomia com extrativismo. É fundamental, sem dúvida, ampliar o uso sustentável da gigantesca sociobiodiversidade das florestas tropicais (e de seus rios).
Ricardo Abramovay* –
Um dos mais frequentes e nefastos equívocos sobre os rumos do crescimento da Amazônia consiste em confundir bioeconomia com extrativismo . É fundamental, sem dúvida, ampliar o uso sustentável da gigantesca sociobiodiversidade das florestas tropicais (e de seus rios). Os povos da Amazônia, os cientistas, os empresários responsáveis, os ativistas e as organizações de fomento ao empreendedorismo têm feito progressos imensos nesta direção. Mas a bioeconomia tem que ir muito além das florestas.
O Selo Origens Brasil agrega comunidades locais e dezenas de empresas de vários tamanhos, que beneficiam e comercializam produtos de áreas protegidas, com apoio do Instituto Socioambiental , do IMAFLORA e de diversas outras organizações não governamentais. O Projeto Amazônia 2030 tem divulgado trabalhos mostrando os potenciais dos produtos da sociobiodiversidade florestal tanto em mercados globais como no fortalecimento da gastronomia e do turismo . Centro de Empreendedorismo da Amazônia , Conexsus , BelTerra , IDESAM , Amazônia 4.0 , são apenas algumas de uma quantidade crescente de organizações voltadas à valorização do trabalho dos povos da floresta e dos potenciais nela contido em termos de alimentação, novos materiais, usos farmacêuticos e cosméticos.
Mas é claro que, quando for interrompida a destruição atualmente promovida pelo governo federal , a economia da floresta não será suficiente para permitir que o crescimento econômico da Amazônia se traduza em melhoria das condições de vida daquela que é a região brasileira com os piores indicadores sociais . Não se pode tratar a bioeconomia como um atributo limitado à floresta, como se fosse um setor econômico, uma redoma dentro da qual a natureza será protegida, junto com os povos que dela diretamente dependem e que procuram preservá-la.
Bioeconomia é, literalmente, a economia da vida. Neste sentido, mais que um setor entre outros, ela é um valor que deve estar na base de toda e qualquer decisão econômica, em qualquer região do mundo. O desafio da humanidade no Século XXI consiste em reduzir as desigualdades, exterminar a pobreza e a fome, a partir de modelos de crescimento econômico que regenerem os tecidos naturais até aqui devastados pelas formas predominantes de produção de bens e serviços. Orientar o crescimento econômico para a luta contra a crise climática (como vêm fazendo os países que têm relevância no cenário político e econômico global) é colocar a defesa da vida como vetor das atividades humanas.
Mas é claro que este ponto de partida, estes valores ético-normativos , se traduzem de forma diferenciada em cada região. No caso da Amazônia, não se trata apenas de proteger a floresta para que ela cumpra suas funções ecossistêmicas globais e permita melhorar as atividades e as condições de vida das populações que aí vivem. Quando a destruição for afastada da paisagem social das florestas, os efeitos multiplicadores da sociobiodiversidade florestal aparecerão com mais clareza, bem como seus impactos sobre o trabalho e a renda da população. A industrialização dos produtos da floresta e a aplicação da melhor ciência em seu conhecimento são também fontes fundamentais de inovação e crescimento econômico. O trabalho do Instituto Escolhas mostra que a Zona Franca de Manaus pode ganhar dinamismo se suas capacidades industriais e tecnológicas se voltarem para o uso sustentável da sociobiodiversidade florestal. Mas isso será insuficiente.
O capítulo sobre bioeconomia do Painel Científico para a Amazônia mostra que a economia da vida é fundamental para o conjunto da região. Em primeiro lugar, ela deve orientar as políticas urbanas da Amazônia, já que sedes municipais reúnem quase 70% de sua população. Só as regiões metropolitanas da Belém e Manaus contam com 5,5 milhões dos 30 milhões de amazônidas brasileiros.
Enfrentar as carências em educação, saúde, saneamento, gestão de resíduos, habitação e conexão à internet destas regiões exige abordagens inspiradas pela ideia cada vez mais importante nas organizações multilaterais de “ soluções baseadas na natureza “. Estas soluções têm que entrar na matriz estratégica das políticas urbanas da Amazônia.
Um exemplo, neste sentido, é a urgência em se promover o maior uso da madeira em obras de infraestrutura urbana, no lugar do concreto, cujo impacto sobre os serviços ecossistêmicos é altamente destrutivo. Usar a madeira não é sinônimo de destruir a floresta. Ao contrário, este uso supõe o manejo sustentável das áreas florestais, promovendo integração entre necessidades urbanas e fortalecimento da sociobiodiversidade . Arborização urbana ( como vem sendo promovida em Belém ) é outro exemplo de soluções baseadas na natureza, sobretudo em regiões de tão altas temperaturas.
Mas as “soluções baseadas na natureza” terão que inspirar também a agropecuária de commodities e a agricultura familiar da Amazônia que já possui uma rica experiência neste sentido, como mostram os trabalhos do professor Francisco de Assis Costa . O mundo aceitará cada vez menos produtos agropecuários vinculados à destruição da natureza e ao empobrecimento dos serviços ecossistêmicos por ela prestados. Além do respeito às áreas protegidas, deverão ser implantados métodos produtivos que usem os produtos da sociobiodiversidade , que não poluam os rios e o solo e cujo valor agregado esteja não apenas em seus baixos custos, mas sobretudo na capacidade de rastrear seus efeitos regenerativos. A agroecologia, que se tornou política oficial da União Europeia , oferece caminhos promissores para a Amazônia.
Estes são rudimentos de uma ideia que precisa ser aprofundada e cuja inspiração principal é que o crescimento econômico da Amazônia, a luta contra a pobreza e as desigualdades não podem padecer da cisão que consiste em afirmar o valor ecossistêmicos da floresta e, ao mesmo tempo, preconizar modalidades convencionais de crescimento econômico para as cidades, a oferta de commodities e a agricultura familiar.
Se a economia da vida é o vetor do crescimento econômico global é óbvio que, para o país detentor da maior sociobiodiversidade do Planeta, ela oferece oportunidades que o fortalecimento da democracia, a luta contra as desigualdades, a ciência e os povos da Amazônia e do Cerrado saberão aproveitar.
https://tab.uol.com.br/colunas/ricardo-abramovay/2022/01/13/bioeconomia-e-um-valor-etico-e-nao-um-setor-economico.htm
* Professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP. Foi Autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza” (Ed. Elefante/Terceira Via, São Paulo).
#Envolverde





