Covid e cobiça: a importância da vida humana para a elite brasileira, ontem e hoje
Carlos Eduardo Frickmann Young, Professor Titular do Instituto de Economia da UFRJ – A busca da elite brasileira por manter seus privilégios econômicos acima da proteção à vida dos demais, em especial os menos favorecidos, é tão antiga quanto o próprio país.
Carlos Eduardo Frickmann Young, Professor Titular do Instituto de Economia da UFRJ –
A busca da elite brasileira por manter seus privilégios econômicos acima da proteção à vida dos demais, em especial os m os favorecidos, é tão antiga quanto o próprio país. No pres te mom to, o objetivo do Governo Federal é acabar com as medidas de isolam to social, sob o argum to de que o “Brasil não pode parar”. Quando questionado sobre o risco de aum tar consideravelm te as mortes por COVID 19, as respostas vão desde a negação do problema (“é só uma gripezinha”) ao uso de afirmações baseadas em dados notoriam te subestimados pela subnotificação de casos no Brasil. Vale fazer uma m ção especial ao obtuso texto do Ministro das Relações Exteriores, que afirma ser o novo coronavírus um “plano comunista”, “para acelerar o projeto globalista” que “já se vinha executando por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do dogmatismo politicam te correto, do imigracionismo, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio da raça, do antinacionalismo, do ci tificismo”.
A base de argum tação do Governo Federal e de algumas administrações estaduais e municipais, com apoio de carreatas de empresários e outros det tores de reluz tes automóveis, é de que é mais importante retomar a “normalidade econômica” (como se fosse possível) mesmo que “infelizm te algumas mortes” t ham que ocorrer. Ou seja, a economia está acima da preservação de “algumas” vidas, que no caso brasileiro serão, ao m os, dez as de milhares. “Paciência”, diz o discurso presid cial, “todos nós iremos morrer um dia”, a pandemia é “muito mais fantasia” do que realidade.
Há algo de novo no front hospitalar? Infelizm te, não. Os efeitos do Covid 19 não se distribuem homog eam te pela população. Não há dúvidas de que o colapso hospitalar afetará principalm te os mais pobres, com m or capacidade de se adequar às exigências sanitárias (o déficit em saneam to público é notório), sem condições apropriadas para o isolam to de pessoas infectadas (déficit habitacional) e com precário acesso aos serviços de saúde. Estudos sobre a idemia nos EUA demonstram que grupos étnicos, como negros e latinos, sofrem mais com a do ça, e certam te isso está relacionado a desigualdades socioeconômicas.
Também nada de novo na História. Nem tragédia, nem farsa. O descaso dos que mandam com a maioria que lhes obedece é pura monotonia. Nossa economia foi forjada pela desigualdade e pela subordinação do direito à vida ao interesse do “andar de cima” (seja a Coroa Portuguesa, o s hor de g ho, o barão do café, o banqueiro r tista, ou o empresário “anticomunista”).
Um dos mom tos que explicita o descaso institucional da elite com o povo foi quando o Parlam to Brasileiro escrevia sua primeira constituição. Em 1823, se discutia como o conceito de cidadania poderia coexistir com a escravidão, que por definição é sua negação em absoluto. [2] Essa contradição era obviam te percebida pelos constituintes que, embora se rejubilassem pelo conceito de liberdade da jovem nação, não tinham interesse em modificar o status quo da economia escravocrata. Os argum tos tão usados para a manut ção da escravidão em um país “livre” se parecem muito com os usados atualm te para o fim do isolam to social. Troque “isolam to” por “escravidão”, e a linha de raciocínio de duz tos anos atrás ressurge: a abolição (isolam to) prejudicaria a atividade econômica, e os que sofreriam mais seriam os escravos (pobres) porque ficariam sem garantia do sust to. As perdas humanas com a escravidão (mortes com a idemia) são um custo triste, mas inevitável para que a ordem normal das coisas seja restabelecida.
R roduzo um trecho da fala do D utado Constituinte (Padre) José Martiniano de Al car (Ceará) em sessão de 30/9/1823, em defesa do artigo que não permitia que os escravos e ex-escravos no Brasil fossem considerados cidadãos: [3]
“… digo que o artigo está conforme aos princípios de justiça universal, porque ainda que pareça que deveríamos fazer cidadãos brazileiros a todos os habitantes do território do Brazil, todavia não podemos seguir rigorosam te este princípio, porque temos tre nós muitos que não podemos incluir nesta regra, sem of der a suprema lei da salvação do estado. É esta lei que nos inhibe de fazer cidadãos aos escravos, porque além de serem propriedade de outros, e de se off der por isso este direito se o tirássemos do patrimônio dos indivíduos a que pert cem, amorteceriamos a agricultura, um dos primeiros manaciaes de riqueza da nação, e abririamos um fóco de desord s na sociedade introduzindo nella de r te um bando de hom s, que saidos do captiveiro, mal poderião guiar-se por principios de bem t dida liberdade”.
Nesse período, a maior parcela da população morando no recém inv tado Brasil era indíg a e de negros cativos, mas cuja cidadania brasileira foi negada sem n huma hesitação tre os constituintes. Em sessão de 23 de setembro de 1823, o S ador Manuel de Souza França (Rio de Janeiro) argum ta que:
“Nós não podemos deixar de fazer essa differ ça ou divisão tre brasileiros e cidadãos brasileiros. Segundo a qualidade de nossa população, os filhos dos negros, crioulos captivos, são nascidos no territorio do Brasil mas todavia não são cidadãos brasileiros. Devemos fazer esta differ ça: brasileiro é o que nasce no Brasil, e cidadão brasileiro é aquelle que tem direitos cívicos. Os índios que vivem nos bosques são brasileiros, quanto não abração a nossa civilização. Convem por consequ cia fazer esta differ ça por ser heterogênea nossa população”.
O S ador Francisco Gê Acaiaba de Montezuma concorda:
“Os índios porém estão fóra do grêmio de nossa sociedade, não são subditos do Imperio, não o reconhecem, nem por consequ cia suas autoridades desde a primeira até á última, vivem em guerra aberta comnosco; não podem de fórma alguma ter direitos, porque não têm, não reconhecem deveres ainda os mais símplices, (fallo dos não domesticados) logo: como considera-los cidadãos brasileiros?”. [4]
Em resumo, nossa primeira Constituição, elaborada pelo Poder Legislativo e apoio do Executivo, estabelecia que: (1) o direito econômico da propriedade privada do escravo se sobr unha à proteção do direito individual do escravizado, (2) a importância de garantir a produção também se sobr unha ao direito individual à liberdade, e (3) a cidadania era excluída da maioria da população, e mesmo alforriado o indivíduo não seria cidadão, salvo “se for digno de o ter”, especificado como t do um “officio”, ou seja, ocupação econômica de interesse.
Em 2020, quase dois séculos d ois, a liderança do Executivo Federal com apoio de uma parcela da elite política e empresarial, ao propor o fim do isolam to social, sem base em análise ci tífica, argum ta que: (1) o direito econômico de produzir e (2) a importância de garantir a produção deveriam se sobr or à proteção do direito individual de proteção à vida, e (3) o conceito de cidadania, t dido como proteção à própria vida, da maioria da população pode ser negado se em conflito com o interesse econômico.
Dois séculos s aram essas manifestações. Em comum, mostram a persistência da negação dos direitos fundam tais, de cidadania e vida, quando em conflito com o interesse econômico. As condições de vida de negros continuam inferiores aos dos brancos, e indíg as ainda lutam para manter seus direitos de cidadania; ambos sofrerão desproporcionalm te mais com o COVID 19. Até quando será válido o princípio dos primeiros constituintes em dividir a população tre brasileiros sem direitos e cidadãos brasileiros “pl os”?
[1] Cem Anos de Liberdade, Realidade e Ilusão . Samba- redo da Mangueira, 1988, composto por Hélio Turco, Jurandir e Alvinho.
[2] Ver https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/pl ario/discursos/escrev dohistoria/125-anos-da-lei-aurea/1823-discussao-sobre-o-conceito-de-cidadania.-debate-sobre-a-condicao-do-negro-no-brasil?fbclid=IwAR3C6RJJ34EvudfTIWZQ138cj1k-lirbwgZyAAVnBo6WtG4V91xXGGZvnQw
[3] Desde o início de nosso parlam to destacam-se lideranças que misturam a religião e a política, Deus e a pátria, como no caso do parlam tar e padre José de Al car. Mas que não costumam seguir muito com rigor os preceitos definidos por essa dupla militância: Al car conciliou seu celibato sacerdotal com uma relação marital com a prima, Ana Josefina, que lhes r deram muitos filhos. Para a língua portuguesa, isso foi uma grande felicidade: o primogênito homônimo, de alcunha Cazuza, tornou-se um dos mais importantes escritores brasileiros do século XIX.
[4] Não se deve deixar de louvar o ufanismo patriótico do S ador Montezuma, de fazer inveja aos que hoje cantam o hino nacional e se vestem com a bandeira para se manifestam pelo extermínio em massa dos brasileiros idosos, diabéticos ou hipert sos. O primeiro e único Visconde de Gequitinhonha nasceu mestiço e chamado Francisco Gomes Brandão. Quando da ind dência, num lampejo de amor à pátria e seus povos nativos, mudou seu nome para incorporar nomes indíg as. O que, claro, não modificou sua visão de que tais povos não tinham direito e, portanto, foram justam te massacrados (incluindo o asteca Montezuma). Uma incongruência que possivelm te hoje lhe garantisse posição de Ministro do atual Governo Federal.





