Vaza Jato e o Estado Democrático de Direito
por Patrícia Kalil com ilustrações de Laerte Coutinho* – Lula ainda tem apoio popular e uma renomada equipe de defesa interessada no caso que tem importância histórica e repercussão internacional.
por Patrícia Kalil com ilustrações de Laerte Coutinho* –
Lula ainda tem apoio popular e uma renomada equipe de defesa interessada no caso que tem importância histórica e repercussão internacional.
Mas, e as lideranças indígenas e quilombolas ameaçadas? E as mulheres do campo? E os pobres, moradores de periferia e favelas? E a comunidade LGBTI? E os ambientalistas e jornalistas em ações independentes nesse país?
Podem todos contar com essa justiça em caixa baixa?
Mesmo antes dos vazamentos divulgados pelo jornal online The Intercept Brasil , já sabíamos que o Ministro Sergio Moro e colegas burlaram as regras do jogo para marcar gols. Nossa cara de tacho é porque o mundo agora repercute o que foi colocado embaixo do tapete com o consentimento de muitos. Para refrescar nossa memória e refletirmos a partir de uma base de fatos, listo dez momentos marcantes em que a nossa Constituição foi ignorada:
Moro divulga conversa presidencial obtida de maneira ilegal em março de 2016
e ajuda a
acelerar o impeachment de Dilma
(ago/2016); ministro
Teori Zavascki (STF) considera a divulgação inconstitucional
e
Moro alega que o conteúdo era mais importante que vazamento
;
Espetacularização de mais de mil mandados de busca e apreensão, mais de duzentas
conduções coercitivas e outras duzentas prisões preventivas feitas sem amparo legal
e com “negociações escuras” em 176 acordos de delação premiada;
“Publicidade opressiva veiculada pela mídia brasileira”
destroça não só a reputação de políticos e empresários como também imagens de empresas brasileiras – a opinião pública fica cada vez mais desacreditada da “velha política”;
Moro acelera despacho e
decreta prisão de Lula
(abril/2018), ano eleitoral
, antes de transitar em julgado (antes de esgotar possibilidade de recursos sobre falta de provas)
“Censura prévia” impede Lula de dar entrevistas
até
abril de 2019;
Lula é proibido
de receber visitas que não fossem da família e advogados;
Lula é proibido de
gravar vídeos da prisão;
Já este ano, depois das eleições, a substituta de Moro juíza Carolina Lebbos
proíbe Lula de ir ao enterro do irmão
;
Lula também
é proibido de falar com a imprensa no velório do neto
onde permanece por duas horas; Lula é
advertido por PF por “acenar” ao público;
Juiz e procuradores da Lava Jato tentam
abocanhar R$ 2,5 bilhões da Petrobrás
para criação de fundação particular;
Vaga no STF é negociada entre Moro e Bolsonaro
(declaração de compromisso é feita pelo próprio presidente).
O país aceitou tudo isso. Muitos ficaram quietos por não gostarem do PT e outros por receio de serem confundidos com petistas. Tínhamos informações suficientes para saber que o juiz Moro, sua substituta Carolina Lebbos, a juíza Gabriela Hardt, policiais federais ligados à operação, os procuradores da Lava Jato e até ministros de STF, talvez movidos por violentas emoções, deram passos fora da lei e praticaram abusos de poder e autoridade. Argumentar que a importância do combate à corrupção, a grandiosidade e popularidade da Lava-Jato asseguravam tais irregularidades é esquecer-se que outras tristes e importantes passagens da história mundial também valeram-se de meios autoritários e apelo popular para fazer o que fizeram. O que as revelações das conversas entre eles acrescentam até agora são novas evidências do uso do Judiciário para fins políticos .
Os diálogos divulgados pelo jornal online The Intercept Brasil revelam que Moro ajudou a acusação com contatos de testemunha , que o coordenador da Lava-Jato não tinha certeza de provas contra Lula , que Moro orientou mudança na ordem das operações , que Moro incentivou Dallagnol a escrever carta do MP à imprensa para atacar a defesa de Lula , que Moro e procuradores do Ministério Público escolhiam alvos para a operação ter ares de imparcialidade mas com o cuidado para não “melindrar alguém cujo apoio era importante” , que pessoas ligadas à mulher de Moro tentaram extorquir US$ 5 milhões Tacla Duran (ex-advogado da Odebrecht) para ele não ser preso; e que aceleraram o julgamento e condenação de Lula para tirá-lo da corrida presidencial, com consequência direta na eleição do ano passado.
Defender as táticas da operação Lava-Jato e da participação da grande imprensa nisso tudo é não entender o Estado Democrático de Direito. O cumprimento da Lei deve ser causa máxima do povo brasileiro, não estratégia de direita ou de esquerda. Sem isso, estamos concordando com um estado de tirania. A Constituição existe em defesa dos nossos direitos, sem distinção de raça, cor, sexo, religião, origem social, opção política ou sexual. São as regras do jogo, se perdem a validade ou a importância, estamos aceitando o salve-se quem puder. Lula ainda tem apoio popular, uma renomada equipe de defesa interessada no caso que tem importância histórica e repercussão internacional. E as lideranças indígenas e quilombolas ameaçadas? E as mulheres do campo? E os pobres, moradores de periferia e favelas? E a comunidade LGBTI? E os ambientalistas e jornalistas em ações independentes nesse país? Podemos todos contar com essa justiça em caixa baixa?
A Justiça deve ser cega como ideal de imparcialidade , mantendo-se equidistante da defesa e da acusação para fazer seu julgamento. A Justiça não é para ser vingativa, é para ser justa. O juiz “dar-se-á por suspeito se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes” e “se tiver aconselhado qualquer das partes” ( art 254, i e iv do Código de Processo Penal ). A imprensa livre e imparcial é fundamental para a saúde da democracia . A grande imprensa, por censura ou por omissão, há muito deixou de cumprir seu papel. Essa reflexão vai muito além de #LulaLivre, mas é um alerta de urgência constitucionalista pela união em defesa do Estado Democrático de Direito .
Operação Lava Jato: retrospectiva ilustrada e comentada pelas minas!
Vamos lembrar de 2014, o ano que começa a operação Lava Jato? Brasil perde da Alemanha por 1 a 7 em casa. É ano eleitoral. O espetáculo da Lava-Jato ganha força na Globo e
o Jornal Nacional passa a atuar como sócio da operação em um reality show editado para mandar o PT e toda a esquerda para o paredão
. O JN inflamava fase de apuração e pré-condenava investigados para formar a opinião pública.
As fases 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 da Lava-Jato foram todas em 2014 e tinham como meta esfarelar o PT antes das eleições . Para isso, de maneira inconsequente ou não, destruía a Petrobrás, Odebrecht e outras grandes empresas brasileiras.
No caso da estatal, vale lembrar que quatro anos antes a
Petrobrás dava início à produção comercial do pré-sal e que Lula comemorou o feito como ‘a Independência do Brasil’
. A partir de 2014, como resultado das divulgações da Lava-Jato, fornecedores começaram a quebrar, estaleiros e refinarias fizeram demissões em massa. A desconfiança do investidor crescia. Balanço do ano: a Petrobrás registrou
um prejuízo histórico de R$ 21 bilhões (as perdas com corrupção foram de R$ 6 bi)
.
No caso da Odebrecht, a operação também levou o conglomerado empresarial de capital fechado à bancarrota, fazendo o país amargar com mais uma grande perda de expertise e tecnologia nacional.
O único resultado palpável dessa campanha pública de difamação empresarial foi a demissão em massa de funcionários de empreiteiras –mais de 200 mil perderam empregos–, em um país que já estava e ainda está com a economia à deriva, sem boia e sem socorro
. Em qualquer caso de corrupção, deve-se multar e punir os executivos envolvidos, mas preservando a reputação das empresas tão importantes para a economia do país (como acontece no mundo todo).
Antes de questionar a
imparcialidade jurídica na condenação de Lula pela operação Lava-Jato no ano passado com consequência direta na eleição presidencial
, vamos falar de outras aberrações sem amparo legal praticadas por procuradores e por juízes. Uma série de conduções coercitivas de investigados e negociações com delações premiadas. Aberrações essas que ainda não tem nada a ver com o conteúdo vazado pelo jornal online The Intercept.
Reinaldo Azevedo, um comentarista de direita e assumidamente antipetista, é enfático em lembrar que
a operação Lava-Jato tem sido uma “máquina de destroçar reputações”
. E com apoio da mídia de massa, em especial da Rede Globo, que praticamente publicou durante quatro anos todos os releases divulgados pela Lava-Jato sem se dar ao trabalho de ouvir e dar o mesmo espaço às partes acusadas.
“A imprensa comprava tudo”
,
declarou a jornalista Christianne Machiavelli, ex-assessora de imprensa da operação.
Acontece que mesmo com o esforço da parceria Moro-Mídia em 2014, Aécio não venceu as eleições. Se pelas vias democráticas a direita não voltou ao poder, agora era necessário criar outro caminho para tirar Dilma do Planalto e
tirar também o petróleo do Brasil
. O
agro já não queria mais a esquerda
com a agenda clara de expansão em terras da União. Os
bancos muito menos
, pois já se sentiam pressionados a baixar os juros desde o primeiro mandato do governo Dilma. Os
empresários da classe média também se uniram em torno de projeto neoliberal
contra os direitos trabalhistas e sociais.
Para continuar levando multidões às ruas e dar a letra para o povo decorar,
a pegada moral costurava o uniforme dos cidadãos patriotas de bem e fragilizava, dia a dia, a diversidade, a liberdade e a democracia
.
Em dezembro de 2015, o processo de impedimento contra Dilma foi aberto com a denúncia de
pedalada fiscal e crime de responsabilidade. Ninguém sabia o que era isso.
O que o povo conseguia entender a essa altura depois de dois anos de massacre midiático diário era que a Lava-Jato estava limpando o país, que o PT (também) estava envolvido no maior escândalo “já revelado” da Petrobrás e que Dilma não conseguia mais governar.
Em agosto, assistimos à falta de preparo da nossa classe política nas sessões de julgamento de Dilma que resultaram na chegada de Temer à presidência . Os discursos pobres e vazios de nossos deputados não são uma boa memória. É até hoje vergonhoso saber que esse é o nível de nossos representantes federais.
O governo
Temer, que se definia como a ponte para o futuro neoliberal, mostrou-se como a escada para a extrema direita subir ao poder.
A operação Lava-Jato afundava a esperança do brasileiro em um mar de lama. A defesa de Lula alegava a falta de provas (algo que foi apresentado em conversa no Telegram entre Dallagnol e Moro), mas isso parecia desculpa esfarrapada de petralhas.
Sem demora, em 2017
a pré-campanha eleitoral aquecia os tambores com a compra de informações privadas de 87 milhões de brasileiros usuários de redes sociais. Todos os dados foram passados para uso da Cambridge Analytica
, que construiu estratégia personalizada de distribuição de mensagens para a campanha Bolsonaro.
Não bastasse a
epidemia de notícias falsas contra toda a esquerda em disparos pagos de propaganda política,
vazamentos da Lava-Jato também eram usados sem moderação nesses pacotes.
Moro aparecia como superherói em memes viralizados nas redes sociais
.
O Brasil fica doente. Parentes e amigos brigam por causa de política. A violência cresce nas ruas. Lula é preso e Lava-Jato tenta tirá-lo de cena até o fim das eleições.
Para isso, a Justiça proíbe que Lula dê entrevistas para qualquer jornal antes das eleições. Sabíamos disso sem precisar ler as revelações do The Intercept. O que as conversas revelaram é que a proibição de entrevistas era por medo de enfraquecer a campanha de Bolsonaro.
Logo depois de vencer as eleições, Bolsonaro convida Moro para ser seu superministro da Justiça e Segurança Pública. Sem pensar duas vezes, o juiz pede demissão para se preparar para a nova fase de sua carreira.
Acontece que como ministro do governo suas deficiências começam a aparecer. Até sua falta de domínio de português formal causa estranheza. Um juiz que fala “congê”?
Pois é como superministro que Moro empurra seu pacote anticrime no qual dá licença para matar. Mostra que não tem jogo de cintura para conversar sequer com deputados.
Casos e casos de influência de milicianos começam a pipocar na família Bolsonaro, mas Moro agora parece ignorar toda e qualquer corrupção a sua volta.
Se os vazamentos do Intercept viraram escândalo internacional, este é o momento de todos os brasileiros questionarem as táticas da Lava-Jato e as consequências da operação para a história do país. Precisamos
que as instituições democráticas recuperem sua credibilidade.
Precisamos entender que todos nós estamos vulneráveis quando permitimos que a Justiça não puna um juiz que usou a toga para calar, promover agenda política e interesse pessoal.
*IMAGENS PUBLICADAS PELO JORNAL FOLHA DE S. PAULO, GENTILMENTE AUTORIZADAS PARA REPRODUÇÃO PELA AMIGA DE LUTA LAERTE COUTINHO
*A jornalista Patricia Kalil é colunista da Agência Envolverde

Patrícia Kalil
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