Internacional

Estupro coletivo acende luta das mulheres

“Estupro nunca mais, todas contra 33”, diz o cartaz à frente de uma multidão de mulheres em São Paulo, no dia 8 deste mês, emprotesto sob o lema Por Todas Elas. As manifestações contra a cultura machista no Brasil se multiplicaram pelas cidades do país, após a violação coletiva de uma adolescente. Foto: Paulo Pinto/AGPT
“Estupro nunca mais, todas contra 33”, diz o cartaz à frente de uma multidão de mulheres em São Paulo, no dia 8 deste mês, emprotesto sob o lema Por Todas Elas. As manifestações contra a cultura machista no Brasil se multiplicaram pelas cidades do país, após a violação coletiva de uma adolescente. Foto: Paulo Pinto/AGPT

A indignação generalizada no Brasil pela violação de uma adolescente por mais de 30 homens gerou o protesto de milhares de mulheres pelas ruas das cidades do país, enquanto as respostas do poder político diante desse fato são equivocadas segundo as ativistas.

Por Mario Osava, da IPS – 

Rio de Janeiro, Brasil, 13/6/2016 – A primeira reação do governo federal, diante da comoção nacional, foi criar um Núcleo de Proteção à Mulher, para apoiar os órgãos de segurança pública, que em sua maioria são estatais. A orientação é nitidamente policial e voltada a intensificar a repressão.O governador do Rio de Janeiro, Francisco Dornelles, se declarou favorável à execução dos violadores, embora a pena de morte não exista no país e seja proibida pela Constituição.

O Senado aprovou em urgência uma proposta para aumentar o tempo de prisão para condenados por agressão sexual, com um ou dois terços adicionais quando a violação for praticada por duas ou mais pessoas. Sua entrada em vigor depende da ratificação pela Câmara dos Deputados.

Ampliar as penas não é solução, como se comprovou na Índia, que em 2013 instituiu a pena de morte para casos de violação coletiva ou quando a vítima morre, ressaltou Sonia Correa, uma das coordenadoras do internacional Observatório de Sexualidade e Política. A questão é cultural, “a própria sociedade alimenta a violência contra as mulheres”, desde sempre, e boa parte da população considera culpadas as próprias vítimas de agressão sexual, apontou.

As autoridades partem da percepção de que há um aumento da violência contra as mulheres, pela grande repercussão que teve o caso da jovem de 16 anos, presa em uma casa à mercê do grupo por 36 horas, nos dias 21 e 22 de maio, em uma favela do Rio de Janeiro.A vítima disse ter contado 33 agressores, alguns armados, quando conseguiu recuperar os sentidos. Só denunciou o caso à polícia depois que alguns dos envolvidos postaram imagens de sua violação nas redes sociais. Então ela se sentiu humilhada por um delegado que a tratou como sendo culpada de ter consentido na agressão, sem acreditar em suas afirmações.

A notoriedade e as evidências do caso permitiram que fosse atendida, finalmente, por uma delegada especializada em crimes contra a infância e a adolescência, que aceitou o vídeo como prova da violação, o que facilitou a identificação de vários acusados do crime e detenção de dois deles, até agora.“A cultura da violência tem raízes profundas, quase geológicas, não só no Brasil, onde suas camadas mais distantes estão na colonização e escravidão, com suas tradições androcêntricas de domínio do corpo do outro, não apenas das mulheres, mas também dos escravos”, explicou Correa, uma arquiteta com pós-graduação em Antropologia.

A organização Rio Paz encheu as areias de Copacabana de roupa íntima feminina da cor de sangue ou ensanguentada e de megafotografias de mulheres com o rosto também ensanguentado, representando a população feminina assassinada no Brasil. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
A organização Rio Paz encheu as areias de Copacabana de roupa íntima feminina da cor de sangue ou ensanguentada e de megafotografias de mulheres com o rosto também ensanguentado, representando a população feminina assassinada no Brasil. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O Código Penal Brasileiro, de 1940 e com paulatinas emendas, incluía a agressão sexual entre os crimes contra os costumes, isto é, o considerava um atentado contra a sociedade e a família, não contra a mulher e seu corpo, explicou Correa à IPS. Somente em 2009 se conseguiu uma reforma para corrigir essa distorção e incluir vítimas masculinas. Antes era considerado um crime exclusivamente contra o sexo feminino.

As penas, que variam de seis a 30 anos de prisão e aumentam com agravantes como lesões físicas, morte ou pouca idade da vítima, não frearam o aparente aumento das agressões sexuais no Brasil, um país com quase 205 milhões de habitantes. Oficialmente chegaram a 50.600 em 2011, equivalente a 138 casos por dia, um a cada dez minutos, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão governamental para estudos voltados ao planejamento.

Entretanto, estima-se que esses números representam apenas 10% das violações reais, que poderiam passar de meio milhão de casos ao ano. A maioria das vítimas não denuncia por vergonha, medo de policiais machistas ou desconhecimento de como denunciar e também sobre o próprio crime. É de meninas uma grande parte das vítimas de violência sexual, exercida majoritariamente por familiares e amigos próximos, dentro de casa, o que representa outra grande barreira para a denúncia.

“É uma tragédia que afeta uma maioria negra de 51%”, provavelmente subestimada, segundo Jurema Werneck, médica e coordenadora da organização Criola, de promoção dos direitos das mulheres afro-brasileiras. A grande quantidade de violações “tem origem no machismo, mas também no racismo patriarcal, como uma ação de poder contra as pessoas que consideram inferiores e não empoderadas, como as negras”, destacou à IPS.

A cultura do estupro compreende “uma contradição na população, que se mobiliza em rejeitar um crime hediondo, disposta inclusive ao linchamento quando são violados meninos ou meninas, mas mostra certa tolerância em relação à violência sexual contra a mulher”, pontuou Marisa Sanematsu, diretora de conteúdos do feminista Instituto Patrícia Galvão.

A aparente condenação geral não se reflete na escassa denúncia do crime, segundo Sanematsu, “por medo do julgamento de amigos, da família, polícia e até do juiz. A opinião social é que o homem não consegue controlar seu desejo sexual e reage a uma mulher atraente, maquiada e com roupas provocativas”. A ativistalamentou que se aceite a desigualdade dos papéis sociais: “há mulheres ‘violáveis’, que conhecem os riscos que correm, elas deveriam saber como se proteger, não se expor, é o que pensa boa parte da população”,.

Educação de gênero, segundo Sanematsu, é o melhor caminho para prevenir e reduzir todas as violências contra mulheres. Mas a tendência atual é proibi-la nas escolas, como fez o governo do Estado de São Paulo. “Nada se conseguirá sem atacar as raízes da cultura da violência trivializada”, que não está associada à pobreza, mas que afeta todas as classes, ressaltou.

Às defensoras dos direitos das mulheres preocupa o grande avanço de forças conservadoras na sociedade brasileira, especialmente no parlamento nacional. Ali, vários projetos buscam restringir o aborto, os direitos conquistados pela comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT), e pelas famílias não convencionais.

A onda conservadora se acentuou com o governo interino do vice-presidente, Michel Temer, que presidirá o país até a conclusão do processo de impeachment de Dilma Rousseff, que deve terminar em agosto.O antigo Ministério de Políticas para as Mulheres, agora rebaixado a uma secretaria vinculada ao Ministério da Justiça, tem como titular uma deputada evangélica que já se declarou contrária ao aborto em gravidez provocada por estupro, uma das situações permitidas pela restritiva lei atual.

O gabinete de Temer é o primeiro em anos que não inclui nenhuma mulher, e nem afrodescendentes.Para Sonia Correa, “forças religiosas dogmáticas estão em uma expansão que pretende controlar o país” e conta com uma grande bancada legislativa e uma rede de comunicações, especialmente de televisão, para impulsionar o conservadorismo. Envolverde/IPS