Opinião

Preconceito, Cultura, Política e Utopias (XVII)

por Samyra Crespo – A maior conferência de cúpula da Terra –  

Insisto e gosto de lembrar deste fato: ninguém falava em meio ambiente nem em ambientalismo até a Rio 92. Falava-se em ecologistas e em ‘ecochatos’ (ou ecoterroristas para designar os radicais).

Quando a ONU escolheu o Brasil para sediar a que seria a maior reunião de Cúpula até então realizada por ela, estavam na mesa o Tratado de Florestas Tropicais, o Protocolo de Quioto e Agenda 21 – considerada mecanismo voluntario. O tratado não foi ratificado e deu origem – no futuro – ao que conhecemos como Convenção da Biodiversidade. O Protocolo de Quioto evoluiu do “princípio do poluidor pagador’ para a Convenção do Clima. A Agenda 21 tornou-se um corolário de ações e projetos que no mundo todo prosperou embasando o trabalho de governos e ONGs em prol da sustentabilidade, por mais de uma década. Então, começando pelos resultados: foi uma reunião gigante (cerca de 96 chefes de estado compareceram), inaugurou a era dos burocratas e especialistas verdes bem como as milhares de viagens de avião para as ‘reuniões das partes’; foi nesta Conferência ainda que se cunhou o termo-chave “desenvolvimento sustentável ” e o tripé inclusivo: o desenvolvimento que se edifica em três pilares, o social, o ambiental e o econômico.

Um outro resultado, paralelo à Conferência oficial, foi a presença massiva de ONGs – que na época não tinham assento na reunião oficial. Dessa coalizão surgiu a Carta da Terra, uma espécie de contraponto holístico aos termos pragmáticos da Declaração do Rio, o documento que atesta os consensos governamentais da Rio-92.

Dito isto, porque o Brasil e por que o Rio?

Maurice Strong, Secretário da Conferência era suíço e casado com uma mulher bastante alternativa para os padrões da época. Queria realizar a Conferência num país estratégico do ponto de vista ecológico-ambiental. Queria ainda envolver o empresariado, pois o Relatório Brundtland (principal insumo preparatório à Conferência) mostrava claramente que sem mudar o modo de produção não adiantavam ações mitigatórias. Schmidheiny, empresário progressista e seu amigo criou em Genebra o Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável, que se tornaria desde então o que podemos chamar o “braço empresarial” da agenda pragmática do desenvolvimento sustentável – ideologia que que tem marco temporal e nascimento definidos em 1992.

Várias cidades brasileiras entraram na disputa para sediar a Conferência além do Rio, entre elas: São Paulo, DF e Manaus, no coração da icônica Amazônia.

O Rio montou um comitê local – denominado Pró-Rio e levou a melhor. Além da logística (aeroportos, hotéis, etc.) mostrou uma capacidade de articulação entre os diferentes atores: juntar numa mesma sala bicheiro, artista, jogador de futebol, empresários, ativistas e magnatas. Strong se encantou com a “diversidade” carioca e topou.

Amigos e atores deste complexo processo de convocação do empresariado poderão argumentar que já existiam críticas contundentes ao capitalismo predatório de recursos naturais (Clube de Roma); que o mestre Ignacy Sachs já falava de “ecodesenvolvimento” nos anos 70′. Não importa, estas propostas embrionárias anteriores não fizeram nem ‘cosquinha’ no establishment. 92 fez mais do que se colocar como mais uma crítica antissistema. Ela iniciou um processo vigoroso de “modernização ecológica” do capitalismo.

Não fez revolução, não nos “reconciliou” com a natureza, conforme as propostas da Carta da Terra.

Mas muita coisa ainda estava presente naquela memorável Conferência.

Entre elas, uma “sociedade civil” planetária – organizada em tendas, quiosques, conferências e debates paralelos, performances, músicas e protestos. Uma espécie de “Um outro Mundo é Possível ” verde. Babel de línguas, o inglês macarrônico predominando num mundo que ainda não era dominado pela internet.

Qualquer articulação dependia de e-mail (que não era universal), fax, telefone e secretária eletrônica. Os interurbanos eram caríssimos. Via-se ali o resultado de um esforço tremendo.

No entanto estavam ali no Aterro do Flamengo 2000 organizações, grupos e até INGs – os “indivíduos não governamentais” – para marcar aquele canto coral como o augúrio de um novo momento para a sociedade global. Foi emocionante. As ONGs impedidas de entrar no Riocentro – onde ocorria a reunião oficial – tentavam influenciá-la com petições que eram enviadas a jornalistas, burocratas, autoridades.

Havia um sentimento epocal ali. Uma energia simbólica e até espiritual, quando mais de 40 líderes religiosos mundiais participaram de uma vigília para inspirar as autoridades a tomarem a decisão certa. O Dalai Lama estava ali, entre rabinos, católicos, evangélicos, espiritualistas de todos os naipes: Brama Kumaris, Ananda Marga, BaH’ai, monges e todo o coloridos das seitas New Age.

Naquele entardecer ameno de junho milhares de pessoas peregrinaram até o Aterro do Flamengo. Luzes de velas e isqueiros sinalizavam como fogo sagrado um ritual de fé e esperança no futuro.

Eu, com dois crachás, corria do Riocentro para o Aterro. O ISER foi um dos organizadores da vigília. Meu outro crachá, do CNPQ, onde eu era pesquisadora no MAST (Museu de Astronomia e Ciências Afins) me permitiu levar a pesquisa nacional “O que o Brasileiro pensa da Ecologia” para os espaços oficiais da Conferência. Mais uma vez tive o privilégio de participar e de ser testemunha ocular de momentos históricos irrepetíveis.

Depois falo da pesquisa e de como entrei de cabeça no ambientalismo.

… continua no próximo Post.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.

(#Envolverde)