Opinião

Poço sem fundo: Lições da pandemia e da emergência climática

por Samyra Crespo, especial para a Envolverde – 

Um querido amigo andava frustrado com a dificuldade de publicar um livro que escrevera e sem emprego fixo há um ano, vivia a vida incerta de freelancer, sempre com dificuldades financeiras. Por recomendação de outro amigo comum, foi a um centro espírita consultar-se com um Preto Velho – entidade constitutiva da maioria dos Terreiros de Umbanda, a religião brasileira que encarna o nosso caldeirão cultural – caboclos, indígenas, exus que se apresentam na forma de malandros e prostitutas, ciganos e outros deserdados da sorte. Segundo ele, o Preto Velho se apresentou, como em geral acontece, como um sábio ancião compassivo. Meu amigo então começou a consulta com o seu rol de queixumes: ah, chegara ao “fundo do poço ” e as coisas não podiam piorar – ele estava no limite.

O Preto Velho então pousou o charuto no cinzeiro, bebeu um gole da cachaça e lhe disse: meu filho, o poço não tem fundo, e sempre pode piorar.

Em seguida deu conselhos que mitigaram aquela dor e por um tempo deixou acesa a chama da esperança de dias melhores.

Esta pequena história – verdadeira – me levou a muitas reflexões que compartilho com vocês.

A primeira é que este amigo se matou três anos depois, corroído pela depressão – apesar de alcançar um relativo sucesso como tradutor, para o inglês, de clássicos brasileiros para prestigiosa editora.

Nem toda dor encontra cura neste mundo. A espiritualidade ajuda, ampara mas não salva se nossos desígnios são autodestrutivos. Para o céu fazer a sua parte, precisamos fazer a nossa.

O poço também não tem fundo mesmo e não há garantias de que as coisas não possam piorar ainda mais. As evidências científicas são de piora acelerada.

Vejamos por exemplo, aplicações práticas da pequena história contada, em duas situações dramáticas em que estamos metidos como coletividade, como humanidade na verdade.

A primeira é o aquecimento global e as mudanças climáticas. A segunda é a pandemia do Coronavirus.

Os ciclones na costa catarinense e em parte dos estados sulinos do Brasil não são mais “eventuais”, mas sazonais e cada vez mais violentos. Podem piorar e muito, destruindo riquezas e polos estratégicos de cultivo de alimentos. Além de tirar vidas.

As palavras chaves – ou mágicas – são: prevenção, mitigação e resiliência, tripé de uma atitude pró-ativa, construtiva portanto.

Nada mais será como antes, o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão, dizem a música e as lendas do cordel nordestino.

O saudoso Professor Aziz Ab Saber, geógrafo da USP dedicado à paleogeografia, especialidade que estuda solos, clima e paisagens antigas (nosso passado fóssil) já dizia que o clima migra e com eles as condições de vida. Nada é estático na natureza.

O que fazer então quando as mudanças climáticas já provocam eventos correntes, não no passado ou futuro – mas agora?

A prevenção está em deter o desmatamento, as queimadas, diminuir as emissões de carbono.

Degradar menos os solos e “atrasar ” ou evitar processos de deterioração rápidos e nefastos.

Mas ao avançar com áreas de cultivo ou criação de gado, destruindo massas vegetais de florestas e tudo que nelas vivem, estamos apostando em lógicas de curto prazo que já estão apresentando a fatura: enchentes, secas e eventos extremos, bagunçando nossa bússola e portanto nossa orientação de tempo e lugar. E tudo isso vai piorar.

A mitigação está em desenvolver e usar novas tecnologias, apropriadas para cada ecossistema e dotar as populações locais de meios para lidar com perdas cada vez mais substanciais – tais como a criação de fundos emergenciais e outros permanentes de ajuda econômica orientada. Por fim a resiliência, implicando em novas maneiras de construir (como ocorreu com o Japão – sujeito a terremotos severos), novos sistemas de alarme e proteção das pessoas (como ocorre em áreas de furacão e ciclone nos EUA) e novos estilos de vida e de solidariedade (treino dos cidadãos em técnicas de defesa civil, por exemplo).

Como ambientalista, conheço inúmeras medidas e iniciativas nestas três chaves de ação necessária.

Saídas existem e precisamos lançar mãos delas o mais rápido que pudermos.

Estamos no momento, enquanto humanidade, em estado de negação. Sem reconhecer a gravidade do que está nos nossos calcanhares, nos permitimos ser negligentes, imprevidentes.

O mesmo cenário se dá com a Pandemia. Ela não está indo embora como se pensa. O vírus – COVID 19 – está no seu alto ciclo de contágio e encontrando estratégias para sobreviver. Mais inteligente do que nós, ele muda (daí a palavra “mutação “) para seguir vivendo. E é bem possível que encontre um lar permanente em nossos corpos, ocasionando surtos intermitentes da doença.

A aglomeração que se assiste nos bares, ruas, meios de transporte e festejos públicos ou privados nestes dias de flexibilização das restrições, é um atentado ao bom senso e à sanidade do coletivo.

Outro estado de negação, de achar que as coisas se resolverão magicamente.

Mas talvez a pergunta mais importante não tenha sido feita até agora.

Enquanto muitos lutam pela vida, pela segurança do coletivo e se afligem com o futuro, outros não o fazem.

Não estão nem aí: fumam, fazem sexo sem camisinha, não se vacinam, não mantém os procedimentos básicos na pandemia e por aí vai.

Ignorância?

Alienação?

Corrosão dos valores que nos fazem sustentar a vida?

Desprezo pela própria vida e para com a dos outros?

Bem, aí entramos no terreno da psicologia e das motivações profundas.

Que falem os especialistas!

 

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

Este texto faz parte da série que escrevo para o site Envolverde/Carta Capital.