Por Fabiana Frayssinet, da IPS –
Mendoza, Argentina, 5/11/2015 – Alho menos vermelho? Vinho mais translúcido? A mudança climática também pode afetar os sabores da mesa, se não forem tomadas medidas para mitigar os impactos do aquecimento global, que já são percebidos em cultivos fundamentais para economias locais, como ocorre na província argentina de Mendoza.
Uma exposição da Universidade Nacional de Cuyo (UNCuyo), durante o Fórum de Mudança Climática, realizado em outubro em Mendoza, capital da província de mesmo nome, junto com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), provoca ironias, ao mesmo tempo em que alerta. “A mudança climática afetará a qualidade do malbec?”, pergunta um dos cartazes sobre a mais famosa qualidade de vinho argentino.
“O aumento da temperatura diminuiu a cor dos dentes de alho dos tipos morado e colorado”, conclui outro estudo, realizado pela especialista em horticultura Mónica Guiñazú, da Faculdade de Ciências Agrárias. Apreciações gastronômicas à parte, de cultivos como esses depende grande parte da economia dessa província andina no centro ocidental do país. Somente a vitivinicultura representa 6% de seu produto interno bruto.
“Em nossa economia regional, a uva malbec é a variedade mais importante. Por isso, foi escolhida como objeto de estudo”, explicou Emiliano Malovini, um dos pesquisadores sobre o “efeito do aumento da temperatura na fisiologia e qualidade das uvas malbec”, da cadeira de Fisiologia Vegetal e do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas. Na Argentina, “quase 90% da superfície de alho e de sua produção saem de Mendoza”, acrescentou Guiñazú.
Ainda não é motivo de alarme para os degustadores de vinho, nem para os que usam o alho como condimento, de provadas propriedades nutricionais e terapêuticas. Mas, no caso do malbec, explicou Malovini à IPS, “projetando a mudança climática e, por outro lado, o que já está acontecendo, de anos muito quentes, vemos uma diminuição na qualidade das uvas.
Malovini tomou por base o aumento térmico previsto pelo Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre Mudança Climática (IPCC) para o final do século, entre dois e quatro graus Celsius para essas latitudes sul-americanas. “O que se observa em resultados preliminares é uma pequena diminuição, principalmente na cor”, afirmou, ao se referir às antocianinas, composto químico responsável pela cor do vinho.
“É muito importante porque para um vinho de qualidade, de preço alto, para exportação, é preciso um nível mínimo de cor nas uvas”, pontou Malovini. Paralelamente, “há outro componente, o índice de polifenol no vinho, que é o que possibilita guardá-lo por mais tempo para se obter vinhos envelhecidos de dois ou três anos”, acrescentou. Também se percebe um aumento no álcool e diminuição de sua acidez.
Se a mudança climática é irreversível, Malovini estuda técnicas para enfrentar seus efeitos, como aplicações hormonais e práticas agronômicas, incluída a restrição hídrica dos vinhedos. Também estão preocupados os produtores de alho de Mendoza, que fazem da Argentina o terceiro exportador mundial, depois de China e Espanha, em um país onde mais da metade das exportações é de produtos agropecuários.
As simulações concluíram reduções do ciclo de cultivo de até dez dias, o que em princípio seria positivo, segundo Guiñazú, pois permitiria adiantar colheitas para outros mercados. A má notícia foi que, diante de um aumento da temperatura ambiente de cinco graus centígrados, e de 1,5 grau no solo, houve uma descoloração notável dos alhos colorado e morado. Na Argentina, “mesmo com perda de cor, ainda têm valor, não os desmerece visualmente. Mas na União Europeia dão muito importância à cor”, destacou.
Estimativas do setor indicam que a produção de alho gera dez mil empregos diretos e 7.500 indiretos, e é um dinamizador da região natural de Cuyo, especialmente de Mendoza e da vizinha província de San Juan. Participantes do Fórum de Mudança Climática recordaram que o aquecimento do planeta reduzirá a água proveniente da neve das montanhas, aumentando o processo de desertificação em Mendoza. Além de provocar outros eventos climáticos, como granizo ou secas.
“Nos últimos quatro anos, foi detectado um déficit hídrico significativo. Que pode ser parte da variabilidade histórica, como também da mudança climática”, apontou Daniel Tomasini, coordenador de ambiente e desenvolvimento sustentável do Pnud Argentina. “Espera-se que nos próximos anos os rios de Mendoza diminuam entre 15% e 20% seu caudal”, afirmou à IPS.
Um documento informativo do Pnud alerta que isso afetaria o rendimento das colheitas e a qualidade de vida dos pequenos produtores rurais. ‘”Há risco não só para a segurança alimentar, mas também para a produção de alimentos que é distribuída no resto do país, é exportada, e contribui para sustentar a matriz produtiva”, acrescenta.
Perspectiva que, para Elena Abraham, do Instituto Argentino de Pesquisas de Zonas Áridas, aumentaria a desigualdade social entre zonas secas e oásis produtivos. Em Mendoza, 95% do território é desértico e apenas 4,8% constituem oásis irrigados, onde se concentram 95% de seus 1,786 milhão de habitantes. A agricultura consome 90% da água da província.
Fora dos oásis vivem fundamentalmente pastores, dedicados à pecuária extensiva de subsistência, e pequenos produtores agrícolas, relegados historicamente. “Teremos um deserto no mais estrito sentido da palavra. Deserto vem de desertar, justamente. E as pessoas partirão porque não terão nenhuma opção de desenvolvimento, como já estão fazendo”, destacou Abraham à IPS.
É o paradoxo de uma região do Sul em desenvolvimento que se prepara para mitigar os efeitos de uma mudança climática da qual praticamente não é responsável, mas uma vítima direta, já que os especialistas prognosticam que Mendoza será uma das províncias mais afetadas pela elevação das temperaturas. “A mudança climática deixou de ser algo irreal. É o mundo em que viverão meus filhos e os filhos dos meus filhos”, afirmou durante o Fórum José Octavio Bordón, presidente do Centro de Assuntos Globais da UNCuyo, que trabalha na adaptação aos seus efeitos.
No plano nacional, a Argentina é o terceiro emissor latino-americano de gases-estufa e o 22º no mundo, com 0,88% do total planetário, segundo o Instituto Mundial dos Recursos (WRI). Em suas contribuições previstas e determinadas em nível nacional (INDC), esse país se compromete a uma redução incondicional dessas emissões de 15% até 2030, somando outros 15% desde que haja financiamento internacional para isso.
Esse compromisso, considerado “insuficiente” por ambientalistas locais e internacionais, integra as INDC que serão incluídas no tratado climático a ser aprovado na 21ª Conferência das Partes (COP 21) da Convenção Marco das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (CMNUCC), que acontecerá em dezembro, em Paris.
Além disso, a posição argentina é a de que “não vamos reduzir emissões se isso gera problemas para nossa gente, para o desenvolvimento nacional, e as metas que propomos levam isso em conta”, disse à IPS o subsecretário de Promoção de Desenvolvimento Sustentável, Juan Pablo Vismara.
Segundo esse funcionário do Ministério de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Argentina, “nos preocupa o estabelecimento de obrigações (em Paris) que sejam absolutas, como termos uma cota ou teto de emissões. É preciso considerar que teremos que continuar emitindo, para nos desenvolver e combater a pobreza, mas também porque damos uma contribuição alimentar para o mundo”. Envolverde/IPS