Por Phoebe Braithwaite, da IPS –
Nações Unidas, 19/9/2016 –A pouco conhecida delegada brasileira Bertha Lutz foi quem esteve à frente do grupo de delegadas que, na década de 1940,inscreveram a igualdade de direitos para homens e mulheres na Carta da ONU, na Conferência de São Francisco sobre a Organização Internacional, de 1945.“O manto cai dos ombros dos anglo-saxões e nós as latino-americanas devemos fazer frente à próxima etapa da luta pelas mulheres”, escreveu Lutz em suas memórias, recordando a Conferência.
As pesquisadoras Elise LuhrDietrichson e Fatima Sator, da Escola de Estudos Orientais e Africanos (Soas), de Londres, apresentaram essa história esquecida em uma entrevista coletiva na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), a fim de divulgar a verdadeira história da luta pelos direitos das mulheres na Carta da ONU.“Não se trata apenas de representar fatos históricos. É político, é como se apresenta a história”, disse Dietrichson à IPS.
O papel das nações do Sul Global no estabelecimento das “normas globais”não é reconhecido como deveria. Ao contrário do que se crê, os direitos das mulheres na Carta não são resultado das ações de Eleanor Roosevelt, não foi uma cláusula norte-americana, nem britânica, mas a insistência da América Latina.Lutz junto com Minerva Bernadino, da República Dominicana, e a senadora uruguaia Isabel P. de Vidal foram as que insistiram na menção específica da “igualdade de direitos de homens e mulheres”, no início da Carta.
A delegada brasileira e suas colegas atuaram em uma época em que apenas 30 dos 50 países representados na Conferência haviam outorgado o direito de voto às mulheres. Graças à sua forte determinação, junto com o apoio de participantes do México, da Venezuela e Austrália, conseguiu seu objetivo, e as mulheres foram especialmente mencionadas no Artigo 8: “A Organização não estabelecerá restrições quanto à elegibilidade de homens e mulheres para participar em condições de igualdade e em qualquer caráter nas funções de seus órgãos principais e subsidiários” no sistema da ONU.
A representante australiana, Jessie Street, insistiu muito dizendo: “devem mencionar especificamente as mulheres na Carta, do contrário não terão os mesmos direitos que os homens; já vimos isso uma e outra vez”, contou Dietrichson. O feminismo de Lutz e Street lhes permitiu prever que os direitos das mulheres seriam marginalizados se não fossem reconhecidos de forma explícita, e que não bastava consagrar os “direitos dos homens”, como foi argumentado na época.
Os argumentos da brasileira encontraram oposição nos representantes britânicos e norte-americanos. Ao recordar a Conferência de 1945, que deu à luz a ONU, Lutz descreveu a delegada norte-americana, Virgina Gildersleeve, e recordou: “ela esperava que eu não pedisse nada para as mulheres na Carta porque isso seria muito vulgar”, em sua tentativa de prevenir toda ação em nome das mulheres.
Gildersleeve reescreveu um rascunho da Carta, e omitiu mencionar especificamente as mulheres. Mas, ao final, Lutz, Bernadino, Gildersleeve e a delegada chinesa, Wu Yi-fang, assinaram todo o documento, as únicas mulheres entre 850 delegados que assinaram o documento de fundação.A representante britânica e secretária parlamentar do Partido Trabalhista, Ellen Wilkinson, garantiu a Lutz que a igualdade já havia sido alcançada porque ela havia conseguido um lugar no Conselho Privado do Rei.“‘Temo que não’”, tive que lhe dizer,‘quer dizer apenas que você chegou’”, contouLutz.
Elas “estavam decididas a não lutar pela igualdade de gênero. É algo que vai contra tudo o que nos ensinaram, e que o Ocidente nos ensinou sobre o feminismo. Mas no tocante à Carta, apresentaram mais do que uma oposição”, apontou Sator, da Argélia, à IPS. “E também vai contra tudo o que nos ensinaram, que o Sul global também tem ideias visionárias. Só queremos que as mulheres latino-americanas sejam reconhecidas como reconhecemos Eleanor Roosevelt”, acrescentou a argelina.
Roosevelt não participou da criação da Carta, mas encabeçou a Comissão de Direitos Humanos da ONU em 1946, e foi decisiva na redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas os países ocidentais, incluídos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, procuraram minar essa mesma declaração no início da década de 1950.Como a história dos direitos das mulheres na Carta da ONU, o papel dos países do Sul na criação e proteção dos direitos humanos também está subestimado.
“Está claro que Bertha Lutz e Minerva Bernadino se consideravam representantes de ‘países atrasados’, pois foi algo que elas mesmas disseram”, pontuou Dietrichson. “Elas eram muito críticas a que essas mulheres de países (economicamente) mais avançados não reconheciam de onde vinham seus próprios direitos”, acrescentou.
Na entrevista coletiva, o embaixador brasileiro, Antonio Patriota, disse que Lutz e essa história não são conhecidas nem mesmo no Brasil, e aplaudiu os esforços para difundi-la. Dietrichson destacou que um senso de “propriedade” pode dar legitimidade e permitir a participação das futuras gerações. “A pesquisa faz parte de um esforço maior para redescobrir as origens radicais da ONU”, disse à IPS o professor Dan Plesch, diretor do Centro de Estudos Internacionais e de Diplomacia da Soas.
Faz parte de um projeto acadêmico mais amplo, História da ONU para o Futuro, que busca recontextualizar o fórum mundial, criado não como um “acessório liberal, mas por uma dura e realista necessidade política”, explicou Plesch.Atualmente, quando redobram os chamados para que finalmente seja uma mulher a ocupar a secretaria-geral da ONU, e que seja uma autoproclamada feminista, a pesquisa de Sator e Dietrichson é uma recordação de que ainda há muito a ser feito para cumprir a visão de igualdade que a Carta promove. Envolverde/IPS