por Amelia Gonzalez – Blog Ser Sustentável –
Pesquiso o tema há mais de vinte anos, e não vou me poupar de dar aqui um depoimento enfático: o livro que Saito escreveu após suas pesquisas – “O Capital no Antropoceno”, editado pela Boitempo – respondeu a muitas de minhas perguntas. Mais do que isso, a leitura de Kohei Saito foi me oferecendo a chance de fazer um mergulho também nas obras de filósofos que nos mostram o caminho para que a diferença se manifeste, quebrando o campo da representação.
O ex vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore ganhou o Prêmio Nobel em 2006 revelando ao mundo uma “verdade inconveniente”. Àquela época, a mídia publicava o tema a página dois, dedicada aos assuntos importantes mas anódinos. Num estilo quase apocalíptico, Al Gore desfilou por corações e mentes um cenário triste, de fim do mundo como nós o conhecemos, embasando uma concepção que se tornou quase um mantra: se as emissões de carbono continuarem, o fim do século será muito quente. A humanidade precisava salvar o planeta.
Dezessete anos depois, Kohei Saito lança um livro com muitas verdades muito mais inconvenientes, e certamente não será protagonista de um documentário, tampouco talvez laureado com a premiação tão almejada. Possivelmente porque, diferentemente de Gore, o asiático não traz respostas que nos deixem tranquilos. Nossa participação não pode ser a compra de ecobags ou trocando o carro para um elétrico. É preciso agir em associações.
“O Capital no Antropoceno” analisa o entrelaçamento do capital, da sociedade e da natureza no Antropoceno e aponta falhas nas instituições até agora pensadas pelo main stream para dar solução à crise climática. Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o Mercado de Carbono, a Tecnologia Verde, a Economia Verde, o Green New Deal são, para o autor, escapismos vendidos, cada qual à sua maneira, como deuses ex-machina. O asiático aponta fatos que endossam o que diz e que nem sempre ficam expostos para o público.
A transição total para veículos elétricos pode parecer sedutora, por exemplo. Mas, quando se olha o processo de produção desses carros, eles são feitos com produtos que impactam, destroem o ambiente. Quanto ao combustível, se for à base de etanol, quanta terra será desmatada? E, para as baterias, será preciso minerar cada vez mais e mais para conseguir o lítio necessário.
Nesse ponto, Saito traz uma conclusão que parece óbvia e que leva à proposição fundamental de seu livro:
“ Não tem nada de sustentável no fato de uma família ter mais de um carro, mesmo que todos sejam elétricos”.
O marxista Kohei Saito se junta, então, ao Papa Francisco que, em sua Encíclica editada em 2015 – “Laudato Si” – provoca os fieis a pensarem em um outro tipo de civilização, onde produção e consumo sejam rebaixados. Escreve Saito:
“O objetivo deste livro é mostrar que a grande mudança que precisa ser gerada é, justamente, desafiar o próprio sistema capítalista”.
Rufem os tambores porque entramos num terreno fértil para o pensamento dialético. E polêmico. A partir da metade, Saito desvela o título de seu livro. Ele localiza Marx no Antropoceno e convida os leitores para uma nova interpretação da teoria marxista com base em estudos e pesquisas no projeto Marx-Engels-Gesamtausgabe (Mega) – a maior coleção de escritos de Marx e Engels em qualquer idioma – do qual faz parte como membro do conselho editorial internacional. O pensador alemão, segundo textos descobertos dos últimos 14 anos de sua vida, preocupou-se com a pegada humana sobre os bens comuns (atenção: não são recursos naturais). E rompeu com o produtivismo.
“A chave aqui é a teoria do metabolismo material que Marx desenvolveu em O Capital. O ser humano vive sua vida neste planeta interagindo constantemente com a natureza, produzindo, consumindo e descartando diversas coisas. Marx chamou essa interação cíclica com a natureza de ‘o metabolismo material dos humanos com a natureza’”, escreve Saito.
Ocorre que o capital “causa uma grande perturbação no metabolismo dos seres humanos e da natureza”. Ele faz uso “completo dos seres humanos e da natureza” e, como se pode observar, a “atividade ilimitada do capitalismo é incompatível com a natureza”. Sendo assim, “a consequência disso é o Antropoceno, e essa é também a raiz da crise climática atual”.
Kohei Saito passa a descrever parte de sua pesquisa no Mega, pincelando aqui e ali trechos importantes, fazendo links com o momento que vivemos, apresentando soluções para além da retórica inútil. Para que dê certo o “comunismo do decrescimento”, teoria marxista, é necessário, sobretudo, um forte sentimento de comuna.
“Após catorze anos de estudo, Marx concluiu que a sustentabilidade e a igualdade baseadas numa economia estacionária serviriam como resistência ao capital e se tornariam a base da sociedade futura”, escreve Saito.
Não às “tecnologias fechadas”, que priorizam os países desenvolvidos em detrimento das pessoas “de fora”. Sim às Assembleias de Cidadãos para o Clima, abertas a todos os cidadãos e cidadãs que queiram participar da elaboração de planos para o enfrentamento aos impactos do clima em seus municípios. Não ao “politicismo”, ou seja, eleger bons políticos e esperar que eles façam tudo – “A política parlamentar por si só não pode expandir o alcance da democracia”. Sim à municipalização. Não à subsunção do capital, ou seja, tornarmo-nos impotentes a ele.
Saito vai além: “Precisamos parar de ligar o crescimento econômico à riqueza e considerar seriamente a combinação entre decrescimento e riqueza”.
Consideremos não recursos naturais, mas bens comuns, como terra e água, já que “ter água em abundância é, ao mesmo tempo, desejável e necessário para as pessoas. Nessas condições, a água é gratuita. Essa é a forma ideal de ‘riqueza pública’”.
A juventude de Saito o auxilia a desenvolver estratégias, muitas delas com base no que já vem acontecendo em alguns cantos do mundo, dando aos cidadãos um poder de participação que ele chama de ‘cidadanização”, em uma brincadeira com a palavra privatização. Mas o autor não brinca quando descreve pilares do comunismo de decrescimento, entre eles a “transição para uma economia do valor de uso”. E enfatiza que o comunismo de decrescimento vai ajudar a sociedade a enfatizar “as indústrias de mão de obra intensiva (valor de uso)”.
“O trabalho de cuidado é uma produção que prioriza o valor de uso (setores difíceis de mecanizar). Por exemplo, um cuidador não auxilia a alimentação, ajuda a se vestir e a tomar banho simplesmente seguindo um manual… O mesmo vale para pedagogos e cuidadores de crianças e bebês. “
São chamados de “trabalho emocional”, que “não se pode dobrar ou triplicar a produtividade aumentando o número de pessoas atendidas”. O cuidado e a comunicação requerem tempo.
“Se perseguirmos a produtividade para aumentar o lucro (valor de troca), a própria qualidade do serviço (valor de uso) acabará decaindo”.
Essa é uma tendência mundial, acrescenta Saito, citando alguns exemplos. “Podemos nos solidarizar com eles nesse momento? Ou iremos nos ater à bullshit economy, que desconsidera o valor de uso e dá prioridade ao valor de troca?”
Não creio que seja preciso decifrar a expressão em inglês, tampouco acho necessário descrever a rotina de um trabalhador médio, sem tempo para mais nada que não seja cumprir suas funções para pagar boletos no fim do mês.
Caminhos concretos para além da crítica
Como eu disse no início do texto, o jovem Saito possivelmente faz as contas: em 2050, quando o cenário mundial estará modificado para pior por conta dos efeitos dos eventos climáticos, ele terá 62 anos. Como será seu dia a dia, um senhor entrando na sexta década de vida, portanto com muito chão pela frente, num mundo com ar irrespirável, oceanos acidificados e dependendo de alimentos cada vez mais processados por falta de terra para plantar?
Posso imaginar que, por tudo isso, Saito traça caminhos concretos, para além das críticas. Um deles é o decrescimento. Mas ele sabe também que terá muitos críticos, até mesmo de ambientalistas que acreditam nas estratégias postas atualmente como soluções. Quase sempre postergadas, por falta de um entendimento global, como acontece com as COPs (quando termina uma, a mensagem é sempre que a próxima terá a tarefa de alinhavar acordos que não foram conseguidos).
Assistindo ao excelente encontro que reuniu três especialistas para debater o “Capital no Antropoceno”, ancorados pelo jornalista Bruno Torturra na TV Boitempo, eu encerro este texto com a pergunta que ficou no ar durante o programa:
“O crescimento econômico produz qualidade de vida? Onde esse crescimento se torna real na vida das pessoas?”.
Leiam o livro. Vale a pena.